Balança & Espada

"A justiça tem numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força bruta; a balança sem a espada é a impotência do direito" (JHERING)



Jurisprudência

sábado, 26 de dezembro de 2015

NOSSAS FUTILIDADES

Por CONTARDO CALLIGARIS

Hoje à noite, viajo a Nova York para estar na entrega dos prêmios do Emmy International, que acontece na segunda (23). O seriado "Psi", que criei para o canal HBO (com equipes e colaboradores muitas vezes extraordinários), é um dos indicados ao prêmio de melhor série dramática. Emilio de Mello, o protagonista, é indicado ao prêmio de melhor ator de série dramática.
Agora mesmo, pensando na viagem, sou tomado por uma sensação de futilidade –como quando lemos, no jornal, uma notícia atroz e enxergamos, logo embaixo, a propaganda de uma bolsa, de um relógio ou de um cruzeiro. Estarei num jantar de gala, que celebra o entretenimento, enquanto, por exemplo, o Exército Islâmico escraviza as mulheres do povo yazidi do Curdistão ou, então, massacra jovens sentados num café ou numa casa de show de Paris.
Justamente, os jihadistas do Estado Islâmico nos desprezam porque, aos olhos deles, somos todos fúteis. O bizarro é que nós possamos, de uma certa forma, concordar com eles, ou seja, menosprezar nossa própria cultura e sua aparente "futilidade".
Um romance, um seriado, um namoro no bar ou um show de metal talvez sejam menos fúteis do que um ritual religioso qualquer. Mas nem deveríamos querer justificar nossas diversões, nossa liberdade e nosso prazer de viver.
No campo cristão, São Paulo (não a cidade, que é ótima, mas o autoproclamado apóstolo) é quem engajou o cristianismo numa cruzada contra a futilidade e o prazer.
Claro, Paulo fez que o cristianismo fosse uma religião universal, ótima para a diversidade do Império Romano, e ótima para a cultura moderna. O filósofo Alain Badiou, em "São Paulo – A Fundação do Universalismo" (Boitempo, 2009), é convincente: Paulo fundou uma religião que podia ser universal porque não era mais a verdade exclusiva de um povo, de uma cidade, de um território ou de uma classe social.
Mas isso não me basta para gostar dele. Fico com Nietzsche, achando que Paulo odiava o humano nele mesmo e propôs o mesmo ódio aos cristãos da época e do futuro. Vou ser irreverente (é um bom dia para o espírito de "Charlie Hebdo"): Paulo inaugurou o mecanismo projetivo quando caiu do cavalo e, para não admitir sua imperícia como cavaleiro, achou que Deus o tinha jogado no chão para convertê-lo.
Ele continuou no mecanismo projetivo: inventou um cristianismo sombrio na ilusão de que, perseguindo os "pecadores", ele conseguiria controlar seus desejos carnais.
Resultado: para nós, o prazer e a futilidade são sempre um pouco culpados, como se tivéssemos a obrigação de nos preocupar o tempo inteiro só com o divino e o absoluto. Na época, alguém deveria ter dito a São Paulo: "Get a life", vá viver sua vida, que é melhor...
No dia do enterro de meu avô, que eu adorava, voltando do cemitério, meus sobrinhos e eu (todos pré-adolescentes) fomos despachados para o cinema perto de casa. Eu hesitei. Como assim, ir ao cinema depois do funeral? Meu pai me lembrou que o avô era quem mais me levava ao cinema: assistir a um filme naquele dia talvez fosse o melhor jeito de honrar sua memória.
Pois bem, no ataque contra Paris, os lugares escolhidos foram cafés, restaurantes, um show de rock (todos num bairro boêmio) e um estádio de futebol: são lugares de prazer –de futilidade, não é?
Os jihadistas atacam em nós o que mais os seduz. O que eles odeiam são os atos e os pensamentos que eles precisam destruir dentro de si. Os mortos de Paris, para os jihadistas, não são pessoas (sequer "infiéis"): eles são os representantes de suas próprias tentações internas. Como sempre, os moralistas perseguem (e até exterminam) seus próprios desejos rebeldes.
Esse, aliás, é o ponto de partida para entender os jovens ocidentais que se alistam no Exército Islâmico. Como ocidentais, aprenderam a se odiar por serem "fúteis" e "hedonistas". Eles apenas transformam o ódio de si mesmos em ódio da gente.
O que fazer para que as coisas mudem? Talvez fosse a hora de sermos menos inimigos de nós mesmos. Ou seja, a hora de pensar que nossa grandeza está no fato de que gostamos do mundo onde vivemos. E podemos defender com orgulho não tanto nossas religiões ou grandes ideias, mas o que somos de melhor, sem ironia: uma saída para escutar uma banda legal, papo furado entre amigos à mesa de um café na rua e, às vezes, uns beijos escondidos na porta de um prédio da rua de Charonne. Ou de qualquer rua de nossas cidades.

* Folha de S. Paulo, 19 de novembro de 2015

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