Balança & Espada

"A justiça tem numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força bruta; a balança sem a espada é a impotência do direito" (JHERING)



Jurisprudência

sábado, 26 de dezembro de 2015

NOSSAS FUTILIDADES

Por CONTARDO CALLIGARIS

Hoje à noite, viajo a Nova York para estar na entrega dos prêmios do Emmy International, que acontece na segunda (23). O seriado "Psi", que criei para o canal HBO (com equipes e colaboradores muitas vezes extraordinários), é um dos indicados ao prêmio de melhor série dramática. Emilio de Mello, o protagonista, é indicado ao prêmio de melhor ator de série dramática.
Agora mesmo, pensando na viagem, sou tomado por uma sensação de futilidade –como quando lemos, no jornal, uma notícia atroz e enxergamos, logo embaixo, a propaganda de uma bolsa, de um relógio ou de um cruzeiro. Estarei num jantar de gala, que celebra o entretenimento, enquanto, por exemplo, o Exército Islâmico escraviza as mulheres do povo yazidi do Curdistão ou, então, massacra jovens sentados num café ou numa casa de show de Paris.
Justamente, os jihadistas do Estado Islâmico nos desprezam porque, aos olhos deles, somos todos fúteis. O bizarro é que nós possamos, de uma certa forma, concordar com eles, ou seja, menosprezar nossa própria cultura e sua aparente "futilidade".
Um romance, um seriado, um namoro no bar ou um show de metal talvez sejam menos fúteis do que um ritual religioso qualquer. Mas nem deveríamos querer justificar nossas diversões, nossa liberdade e nosso prazer de viver.
No campo cristão, São Paulo (não a cidade, que é ótima, mas o autoproclamado apóstolo) é quem engajou o cristianismo numa cruzada contra a futilidade e o prazer.
Claro, Paulo fez que o cristianismo fosse uma religião universal, ótima para a diversidade do Império Romano, e ótima para a cultura moderna. O filósofo Alain Badiou, em "São Paulo – A Fundação do Universalismo" (Boitempo, 2009), é convincente: Paulo fundou uma religião que podia ser universal porque não era mais a verdade exclusiva de um povo, de uma cidade, de um território ou de uma classe social.
Mas isso não me basta para gostar dele. Fico com Nietzsche, achando que Paulo odiava o humano nele mesmo e propôs o mesmo ódio aos cristãos da época e do futuro. Vou ser irreverente (é um bom dia para o espírito de "Charlie Hebdo"): Paulo inaugurou o mecanismo projetivo quando caiu do cavalo e, para não admitir sua imperícia como cavaleiro, achou que Deus o tinha jogado no chão para convertê-lo.
Ele continuou no mecanismo projetivo: inventou um cristianismo sombrio na ilusão de que, perseguindo os "pecadores", ele conseguiria controlar seus desejos carnais.
Resultado: para nós, o prazer e a futilidade são sempre um pouco culpados, como se tivéssemos a obrigação de nos preocupar o tempo inteiro só com o divino e o absoluto. Na época, alguém deveria ter dito a São Paulo: "Get a life", vá viver sua vida, que é melhor...
No dia do enterro de meu avô, que eu adorava, voltando do cemitério, meus sobrinhos e eu (todos pré-adolescentes) fomos despachados para o cinema perto de casa. Eu hesitei. Como assim, ir ao cinema depois do funeral? Meu pai me lembrou que o avô era quem mais me levava ao cinema: assistir a um filme naquele dia talvez fosse o melhor jeito de honrar sua memória.
Pois bem, no ataque contra Paris, os lugares escolhidos foram cafés, restaurantes, um show de rock (todos num bairro boêmio) e um estádio de futebol: são lugares de prazer –de futilidade, não é?
Os jihadistas atacam em nós o que mais os seduz. O que eles odeiam são os atos e os pensamentos que eles precisam destruir dentro de si. Os mortos de Paris, para os jihadistas, não são pessoas (sequer "infiéis"): eles são os representantes de suas próprias tentações internas. Como sempre, os moralistas perseguem (e até exterminam) seus próprios desejos rebeldes.
Esse, aliás, é o ponto de partida para entender os jovens ocidentais que se alistam no Exército Islâmico. Como ocidentais, aprenderam a se odiar por serem "fúteis" e "hedonistas". Eles apenas transformam o ódio de si mesmos em ódio da gente.
O que fazer para que as coisas mudem? Talvez fosse a hora de sermos menos inimigos de nós mesmos. Ou seja, a hora de pensar que nossa grandeza está no fato de que gostamos do mundo onde vivemos. E podemos defender com orgulho não tanto nossas religiões ou grandes ideias, mas o que somos de melhor, sem ironia: uma saída para escutar uma banda legal, papo furado entre amigos à mesa de um café na rua e, às vezes, uns beijos escondidos na porta de um prédio da rua de Charonne. Ou de qualquer rua de nossas cidades.

* Folha de S. Paulo, 19 de novembro de 2015

O INCESTO NÃO É FAMILIAR

POR JOÃO PEREIRA COUTINHO

Incesto: haverá coisa mais familiar? Roubo a piada do grande Millôr para formular a questão: o que existe de errado no incesto, partindo do pressuposto de que o leitor considera o incesto errado?
Uns dizem que a palavra apenas esconde abuso de menores. Outros relembram as consequências nefastas que relações consanguíneas podem trazer à descendência.
Reformulo a pergunta com um exemplo: pai e filha, ambos maiores de idade; e a filha –ou o pai– é estéril. Será essa relação errada?
Em muitos países, como Grécia, Itália e Polônia, a lei proíbe essas intimidades. Mas existe uma lista generosa de outros países –Portugal e Espanha, por exemplo, para ficar na vizinhança– que não criminalizam relações incestuosas entre adultos.
Ponto da situação: se a lei não proíbe; se a relação é consensual; e se não há descendência no processo, onde está o mal?
Enquanto o leitor pondera uma resposta, evoco um autor que talvez ajude na discussão. O nome é Theodore Dalrymple, que o Brasil conheceu pela primeira vez por meio da revista "Dicta & Contradicta".
Agora, a editora É Realizações publica a obra do senhor, e "Em Defesa do Preconceito" é um dos títulos. E que título: como é que alguém pode defender o "preconceito" quando o preconceito é a besta do apocalipse da mentalidade progressista?


Como é evidente, a mentalidade progressista começa por ser ignorante sobre o significado real das palavras. "Preconceito", no caso de Dalrymple, não traduz pensamentos discriminatórios sobre grupos ou minorias.
Nesse quesito, aconteceu à palavra "preconceito" o mesmo que à "discriminação": no seu sentido original, "discriminar" é uma capacidade da razão para separar o belo do horrendo; a verdade da mentira; o bem do mal. Alguém que afirme nunca "discriminar" está simplesmente a dizer que é mentecapto.
Igual raciocínio se aplica a "preconceito", que originalmente significava "praejudicium", ou seja, um julgamento baseado na sabedoria acumulada das gerações passadas.
Mas não apenas na sabedoria acumulada: o "preconceito" foi sobrevivendo ao longo do tempo porque, nessa espécie de filtro darwinista, foram continuamente mostrando a sua utilidade.
O livro de Dalrymple começa por recordar-nos esse sentido primevo da palavra. Mas ele vai mais longe. Como afirma o autor, hoje somos todos Descartes em potência: enfrentamos todas as premissas com "dúvidas metódicas" e só aceitamos argumentos (ou comportamentos) que possam ser absolvidos pelo "tribunal" de uma razão "clara e distinta". Esse cepticismo radical apresenta, porém, dois problemas.
O primeiro é que não existe uma razão "clara e distinta". Os conceitos que utilizamos; a linguagem com que pensamos; os ensinamentos práticos que, inconscientemente, fomos internalizando –tudo isso depende de um mundo que já existia antes de nós e que irá sobreviver a nós.
Se uma sociedade tivesse de destruir tudo antes de construir alguma coisa, cada geração estaria eternamente retornando à Idade da Pedra.
Existe um segundo problema: o desejo de escapar ao convencional tornou-se, ironicamente, um comportamento "convencional". Isso significa que os destruidores de preconceitos são apenas movidos por novos preconceitos –por exemplo, a crença quase fideísta de que a rebeldia é sempre melhor do que o respeito pela autoridade. Será?
Ou existem momentos em que um pouco de autoridade –nas escolas, nos hospitais etc.– pode ser aquilo que nos salva da ignorância ou até da morte? O leitor desejava ter um médico "rebelde" que, contra toda a tradição, optasse por inovar radicalmente em plena cirurgia?
O livro de Theodore Dalrymple não é uma defesa de falsos ou perniciosos preconceitos –é preciso "discriminar", lembra? É, tão só, uma defesa modesta de que nem sempre é aconselhável jogar fora o bebê com a água do banho.
E que existe um benefício da dúvida para os ensinamentos que as gerações passadas nos legaram –e que sobreviveram. Mesmo que, em alguns casos, sejamos racionalmente incapazes de "medir", com rigor científico, esses ensinamentos.
O incesto é errado –moralmente falando? Creio que sim e não sei o porquê. Melhor: não quero nem preciso saber. Aceito a minha repulsa moral como uma herança de civilização.

* Folha de S. Paulo, 3 de novembro de 2015, Ilustrada, C6 ilustrada.
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domingo, 11 de outubro de 2015

CATARINA, A GRANDE?

Por Jorge Quadros

Catarina, a Grande, imperatriz da Rússia, de 1762 a 1796, último Tsar mulher.
Alemã cujo nome era Sophie, depois batizada Catarina na Igreja Ortodoxa.
Amiga de Voltaire, Diderot e Montesquieu, abraçou o iluminismo.
Déspota esclarecida, permitiu a reunião de uma assembleia de 652 representantes representantes de todas as classes sociais, para que apresentassem sugestões ao governo.
Em princípio, pelo fim da servidão no país.
Comprou toda a biblioteca de Diderot, deixando-o depositário e administrador até a morte dele.
Comprou coleções dos quadros mais valiosos da Europa e criou a sua própria no Hermitage, tornando-o um dos mais importantes museus do mundo.
Conquistou a Crimeia, dos turcos, permitindo à Rússia acesso ao Mar Negro, onde foram fundadas as cidades de Sevastopol e Odessa.
Deu à Rússia status de potência europeia.
Teve 12 amantes sucessivamente e era muito alegre.



Todavia,
tomou o poder por golpe de Estado.
Foi responsável pelo assassinato de seu ex-marido, o Tsar Pedro III e complacente com seus assassinos.
Foi responsável pelo assassinato do herdeiro do trono russo, Ivan VI, outrora deposto pela então Tsarina Elizabeth, que ordenou sua prisão perpétua.
Foi responsável pela divisão da Polônia com a Prússia e a Áustria por três vezes, até fazer o país sumir do mapa da Europa durante 126 anos, até 1919, quando renasceu com a assinatura do Tratado de Versalhes.
Ao final, horrorizada com os rumos da Revolução Francesa, passou a perseguir as ideologias libertárias, especialmente quem pregasse a libertação dos servos, ou simplesmente defendesse a melhora de suas condições, como ocorreu com Radischev, exilado na Sibéria.

Fonte: Catarina, a Grande, Robert K. Massie, Rio de Janeiro: Rocco, 2012.

sábado, 10 de outubro de 2015

MACONHA LEGAL

Por FERREIRA GULLAR

A legalização do consumo da maconha tornou-se, sem qualquer dúvida, uma questão importante em vários países, inclusive no Brasil. Em alguns outros países essa legalização ou descriminalização já se deu, como no Uruguai e em Portugal, respectivamente. Aqui no Brasil, o Supremo Tribunal Federal debate descriminalizar o consumo da maconha.
No meu ponto de vista, não é que essa descriminalização esteja errada, já que não me parece justo prender e muitos menos condenar quem consome drogas, seja maconha ou qualquer outra. No meu entender, a providência correta é a ajuda terapêutica para livrar o viciado do vício e uma campanha de esclarecimento pelos meios de comunicação e nas escolas.
Há quem afirme que a maconha não provoca nenhum mal e, portanto, não é necessário tratar o usuário dela. Minha experiência pessoal, nesse terreno, é o contrário: a maconha é um alucinógeno e, portanto, conforme seja o indivíduo que a fume, as consequências tanto podem ser insignificantes como desastrosas.
Conheço os dois tipos de consequências: gente que, fumando-a, sente-se relaxada, como outros, que perdem o controle e fazem qualquer coisa, como tentar estrangular a irmã ou jogar-se da janela do apartamento. Como tenho o mau hábito da sensatez, acho que o melhor mesmo é não arriscar.
Digo isso porque, quando era garoto, levaram-me a experimentar a maconha. Dei uma tragada, achei-a desagradável e não aderi. Meu colega Esmagado, também não aderiu, mas o Maninho, que compunha a nossa trinca, achou um barato.
Depois de tantos anos, eu estou aqui, modéstia à parte, saudável e trabalhando. Esmagado tornou-se craque de futebol, enquanto Maninho passou da maconha para a cocaína (o que costuma ocorrer), sumiu de casa e morreu, antes dos 40, depois de várias internações para livrar-se da droga.
Quem defende a legalização da maconha alega que, como os muitos anos de repressão ao tráfico não acabaram com ele, a solução não é essa. Isso me parece mais um sofisma do que um argumento porque, se o aceitarmos, teríamos que desistir de combater a corrupção, uma vez que, após séculos de combate, ela continua.



Por outro lado, nada indica que a legalização da maconha (ou das drogas em geral) acabará com o tráfico. Um exemplo: a venda de cigarros é legal mas o tráfico de cigarros continua apesar disso. O mesmo pode-se dizer do tráfico de pedras preciosas, cuja venda clandestina se mantém apesar da repressão. Por que, então, o tráfico de drogas, que movimenta milhões de reais, iria acabar? Não vejo razão para acreditar nisso.
Mas tudo bem, a maconha vai ser legalizada, de modo que, a partir daí, o consumidor da erva poderá portar, sem problema, a porção de maconha necessária a seu consumo. Mas não uma quantidade que indique ter ele a intenção de vendê-la. Ou seja, consumo pode, venda não pode.
Aí tenho certa dificuldade de entender: se a lei admite o uso da droga, por que então proíbe sua venda? Como justificar-lhe a proibição se a mesma lei considera seu consumo legal? Parece-me contraditório ou sou eu que estou pensando errado? Vejamos: se o Estado admite o uso da maconha, ele está inevitavelmente assegurando que ela não provoca mal algum ao usuário, mesmo porque seria um absurdo permitir o livre consumo, pela população, de algo que lhe prejudique a saúde física ou mental. Logo, para todos os efeitos, se o uso da maconha é legalmente permitido será porque nenhum mal ela causa. Mas, se é assim, proibir-lhe a venda não tem explicação.
Ou tem? Uma explicação possível seria que os próprios legisladores não estejam certos de que o amplo consumo da maconha nenhum mal provoque à sociedade e especialmente ao pessoal mais jovem.
Já imaginou se dezenas de milhões de jovens passarem a se drogar e, em vez de cuidar do futuro,de estudar e buscar uma profissão –entreguem-se ao barato da maconha que tem, como principal característica, deixar o cara desligadão dos problemas da vida?
Não resta dúvida de que dói menos viver nas nuvens do que encarar a realidade. Sim, dói menos até o cara cair na real.

Publicado no Jornal Folha de São Paulo de 20.09.2015, caderno Ilustrada, C8.

domingo, 6 de setembro de 2015

COMUNISMO

"Aquilo que escreveste sobre o comunismo é completamente certo. Não posso imaginar uma utopia mais absurda, nem algo mais discordante das características naturais da natureza humana. E como será enfadonha e insuportavelmente incolor a vida, quando se estabelecer (caso se estabeleça) esta igualdade de bens. Pois a vida é a luta pela existência e, se não houver mais esta luta, não haverá mais vida, e sim um estado vegetativo sem sentido" (TCHAIKOVSKY, 1883).



(Piotr Tchaikovsky:Biografia, Alexander Poznansky, G.Ermakoff, Rio de Janeiro: 2012, pág. 412)

A BANALIDADE DO MAL - II

Por Hanna Arendt

"Não preciso disso", declarou quando lhe ofereceram o capuz preto. Estava perfeitamente controlado. Não, mais do que isso: estava completamente ele mesmo. Nada poderia demonstrá-lo mais convincentemente do que a grotesca tolice de suas últimas palavras. Começou dizendo enfaticamente que era um Gottgläubiger, expressando assim da maneira comum dos nazistas que não era cristão e não acreditava na vida depois da morte. E continuou: "Dentro de pouco tempo, senhores, iremos encontrarmos de novo. Esse é o destino de todos os homens. Viva a Alemanha, viva a Argentina, viva a Áustria. Não as esquecerei". Diante da morte, encontrou o clichê usado na oratória fúnebre. No cadafalso, sua memória lhe aplicou um último golpe: ele estava "animado". esqueceu-se que aquele era seu próprio funeral.
Foi como se naqueles últimos minutos estivesse resumindo a lição que este longo curso da maldade humana nos ensinou — a lição da temível banalidade do mal, que desafia as palavras e os pensamentos.


Eichmann em Jerusalém: Um Relato sobre a Banalidade do Mal, Hannah Arendt, São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 274)

terça-feira, 1 de setembro de 2015

A ESCOLA

POR JORGE QUADROS

Escola não pode ser medida apenas como ambiente destinado à aquisição de conhecimento, voltado para concurso vestibular.
Escola, também, deve ser avaliada como lugar onde os pais podem deixar seus filhos para que possam aprender a conviver e interagir com seus semelhantes (colegas), superiores (professores) e funcionários, bem como lugar onde possam aprender lições de respeito e civismo, enquanto aqueles (os pais) podem exercer suas atividade habituais fora de casa, especialmente o lazer e o trabalho.


(Processo 30.541-62/2013, 3ª Vara Cível do Fórum Regional de Santana, São Paulo-SP).

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

A BANALIDADE DO MAL - I

Por Hannah Arendt

"E assim como a lei dos países civilizados pressupõe que a voz da consciência de todo mundo dita 'Não matarás', mesmo que o desejo e os pendores do homem natural sejam às vezes assassinos, assim a lei da terra de Hitler ditava à consciência de todos: "Matarás", embora os organizadores dos massacres soubesse muito bem que o assassinato era contra os desejos e pendores normais da maioria das pessoas. No Terceiro Reich, o Mal perdera a qualidade pela qual a maior parte das pessoas o reconhecem  — a qualidade da tentação. Muitos alemães e muitos nazistas, provavelmente a esmagadora maioria deles, deve ter sido tentada a não matar, a não roubar, a não deixar seus vizinhos partirem para a destruição (pois eles sabiam que os judeus estavam sendo transportados para a destruição, é claro, embora muitos possam não ter sabido dos detalhes terríveis), e a não se tornarem cúmplices de todos esses crimes tirando proveito deles. Mas Deus sabe como eles tinha aprendido a resistir à tentação".

Eichmann em Jerusalém: Um Relato sobre a Banalidade do Mal, Hannah Arendt, São Paulo: Companhia das Letras, 199, p. 167)


"O que exigimos nesses julgamentos (pós II Guerra), em que os réus cometeram crimes 'legais' é que os seres humanos sejam capazes de diferenciar o certo do errado mesmo quando tudo o que têm para guiá-los seja apenas o seu próprio juízo, que, além do mais, pode estar inteiramente em conflito com o que eles devem considerar como opinião unânime de todos a sua volta. E essa questão é ainda mais séria quando sabemos que os poucos que foram suficientemente 'arrogantes' para confiar em seu próprio julgamento não eram, de maneira alguma, os mesmos que continuavam a se nortear pelos velho valores, ou que se nortearam por crenças religiosas. Desde que a totalidade da sociedade respeitável sucumbiu a Hitler de uma forma ou de outra, as máximas morais que determinam o comportamento social e os mandamentos religiosos — 'Não matarás!' — que guiam a consciência virtualmente desapareceram. Os poucos ainda capazes de distinguir certo e errado guiavam-se apenas por seus próprios juízos, em com toda liberdade; não havia regras às quais se conformar, às quais se pudessem conformar os casos particulares com que se defrontavam. Tinham de decidir sobre cada caso quando ele surgia, porque não existiam regras para o inaudito".

(Eichmann em Jerusalém: Um Relato sobre a Banalidade do Mal, Hannah Arendt, São Paulo: Companhia das Letras, 199, p. 318).


quarta-feira, 19 de agosto de 2015

16 PENSAMENTOS SOBRE PETISTA

POR JORGE QUADROS

1) Você já parou para pensar que PeTista impõe largas cotas raciais para toda a sociedade, mas quando forma 39 ministérios, escolhe apenas um ministro afrodescendente — a Ministra da Igualdade Racial — como se os afrodescendentes só pudessem ocupar esse tipo de pasta?

2) Você já parou para pensar que PeTista é o único que defende diálogo com o Estado Islâmico, que na questão israelo-palestino está sempre do lado do Hamas e, quando se refere ao bairro de Higienópolis em São Paulo, onde moram muitos judeus, fala sempre com preconceito?

3) Você já parou para pensar que PeTista quebra o País para se reeleger e, depois de reeleito, passa a tratar o ajuste fiscal como política de Estado e pede a compreensão e sacrifício de todos para a "retomada do crescimento"?

4) Você já parou para pensar que PeTista, seguindo a doutrina marxista, prega ódio entre as classes sociais e quando uma delas se enfurece e se volta contra ele, então passa a falar sobre a necessidade de a sociedade ser mais tolerante?

5) Você já parou para pensar que PeTista odeia e morre de preconceito contra a classe média, mas quando faz propaganda se vangloria por ter elevado milhões de pessoas à categoria de classe média no País?

6) Você já parou para pensar que quando conversa com alguém supostamente esclarecido que passa a defender PeTista, essa pessoa assim o faz porque trabalha em empresa ou tem empresa que recebe dinheiro do governo federal?

7) Você já parou para pensar quanto PeTista pode lucrar trocando todas as placas de velocidade em São Paulo, a pretexto de diminuir o número diário de acidentes, ou pintando faixas vermelhas nas principais vias e as denominando de ciclovia?

8) Você já parou para pensar que PeTista odeia a "elite branca", mas vive do conchavo político com ela no Congresso Nacional, ou, ainda, do dinheiro dela no canteiro de obras?

9) Você já parou para pensar que PeTista para reunir o "povo" tem que dar pão com mortadela, ou realizar comício para distribuição de benefícios sociais, como "Minha casa, minha vida", Bolsa-família, Prouni etc?

10) Você já parou para pensar que PeTista causa tanta aversão que a "Pátria de Chuteiras" passou a usar o verde e amarelo também em manifestações políticas contra PeTista?

11) Você já parou para pensar que PeTista defende Dilma invocando a Democracia, mas, em política internacional, só se alia e apoia ditaduras e regimes opressivos, como a Venezuela, o Equador, a Bolívia, Cuba, o Irã, a Coréia do Norte etc.

12) Você já parou para pensar que manifestação de PeTista sempre acontece em dia de semana, quando todos estão trabalhando, e sempre é feita em passeata a fim de prejudicar o trânsito nas principais vias da cidade, e que a tática é usada para dar a impressão de que são um número muito maior do que o real?

13) Você já parou para pensar que PeTista em manifestação só usa o vermelho, nunca a bandeira do País, porque a considera símbolo de opressão das "classes dominantes", mas quando rola futebol é o primeiro a parar o trabalho e a comprar cerveja para ver jogo do Brasil?

14) Você já parou para pensar que PeTista é cheio de preconceito contra a classe média, mas vive fazendo festinha para a classe alta, e quando come o melado que ela lhe dá se lambuza todo?

15) Você já parou para pensar que quem PeTista chama de "direita" é você — o contribuinte —, que toda vez que se une para protestar contra o desvio do dinheiro que paga para sustentar o Estado, é chamado de reacionário, e, agora, de coxinha.

16) Você já parou para pensar que PeTista causou tanta aversão em 12 anos de governo federal que a Direita conseguiu desvincular-se da ditadura militar de 64, passou a ser associada com a defesa da República e da Democracia e o conservadorismo, por sua vez, passou a ser a filosofia política da moda?

domingo, 19 de julho de 2015

EXCESSO OU FALTA DE SENTIDO?

POR CONTARDO CALLIGARIS

Tempo atrás, postei no meu Twitter: "Angústia é descobrir que somos pedaços de carne largados num planeta perdido e menor, e que tudo isso não faz sentido algum". Talvez esse seja meu post mais popular, o que mais foi e continua sendo retuitado.
Sigo concordando com ele: há uma dimensão da angústia que provém da sensação de sermos reduzidos a um aglomerado de células sem história e sem palavras explicativas, ou seja, sem nada que diga por que e para o quê existimos (nós e o mundo).
Prova disso, há um exercício comportamental que pode aliviar as crises de angústia e pânico: a gente relembra (articulando as palavras) quem somos, onde estamos, quem são nossos próximos, o que fazemos, com quem nos relacionamos etc. O sofrimento é acalmado pela evocação de um sentido qualquer para nosso momento de vida e nosso lugar no mundo.
Do lado oposto, existem delírios de referência tão flóridos que, numa fuga acelerada do pensamento, o indivíduo passa a acreditar que absolutamente tudo faz sentido –por exemplo, tudo se refere a ele, e o mundo só fala nele. Esses momentos de excesso de sentido são tão dolorosos quanto o deserto de uma crise de angústia.
Você acha o excesso de sentido mais raro do que sua falta? Não sei. Há uma sutil fronteira entre o excesso de sentido de um delírio paranoico e o que acontece a cada hora na internet, na evocação de cumplicidades ocultas e complôs escusos graças aos quais nada é por acaso: tudo o que acontece tem sentido.
Entre esses dois extremos (a derrelição e o pleno sentido) se situa o sofrimento comum, numa espécie de incerteza: sofremos pela falta do sentido ou por seu excesso? Melhor dito, sofremos MAIS pela falta ou pelo excesso de sentido?
Na coluna da semana passada, perguntava-me se as religiões (que dão sentido a nossas vidas) são necessárias para aguentarmos viver.
A pergunta agora pode ser mais complexa: a religião (como exemplo do que pode dar sentido à nossa vida) é um remédio contra a angústia do nada, mas não pode ser ela a fonte do sofrimento que vem do excesso de sentido?
Além disso: será que precisamos de sentido ou poderíamos viver sem sentido algum? Não sei responder.
Constato que, em qualquer terapia pela palavra, coexistem duas atitudes opostas.
Há a tentativa de aliviar e curar o sofrimento revelando, descobrindo ou inventando um sentido para os acontecimentos da vida (é a atitude do conselheiro espiritual, do padre, mas também pode ser a do psicoterapeuta, no exemplo que dei antes, para reagir a uma crise de pânico).
E há a tentativa de aliviar e curar o sofrimento criticando e denunciando o sentido, como se fosse sempre uma ilusão. É a atitude de quem aposta que seja possível pegar mais leve na vida –viver sem precisar atribuir um sentido ao que ocorre e ao que fazemos.
A própria psicanálise oscila entre essas duas atitudes, ou seja, entre interpretações que preenchem nossa vida e nossa história de sentido e outras que revelam que o sentido de tal ou tal outro momento de nossa vida é quase sempre uma ficção ou, pior, um engodo.
Talvez essa oscilação seja a consequência inevitável do fato de que o sofrimento de quem pede ajuda a um terapeuta oscila mesmo entre o excesso e a falta de sentido.
Nenhum sentido parece ser suficiente para responder ao sentimento de derrelição, mas os sentidos que inventamos são sempre em excesso –um pouco como aquele neurótico que, para se impedir de desejar as pernas da irmã, que sempre usava saia curta, decidira tapar com toalhas longas as pernas de todas as mesas de casa.
O excesso de sentido é algo que conhecemos bem: a maioria de nossos sintomas são produzidos por ele –vivemos para expiar uma culpa, agimos para mostrar rebeldia, para ganhar aprovação etc.: os afetos da infância pesam em cima de nós, dão um sentido à nossa vida, mas nos oprimem.
O sentido oferece uma compensação: somos "pesados", viajamos cheios de malas, mas nossa viagem é, por assim dizer, justificada –ela acontece por alguma razão, que podemos até ignorar, mas que supomos e graças à qual acreditamos que não estamos no mundo à toa.
O que conhecemos menos é a leveza que seria possível se conseguíssemos parar de procurar desesperadamente um sentido –sem cair no desespero ao descobrir que talvez, de fato, não haja sentido algum.

Em jornal Folha de São Paulo de 16 de julho de 2015
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segunda-feira, 22 de junho de 2015

A LINDA TRANSEXUAL CRUCIFICADA (artigo de Luiz Felipe Pondé)

POR LUIZ FELIPE PONDÉ

O Brasil está acordando para algo que fingia não saber. O país, continuando na mesma batida, terá uns 50% de população evangélica em poucos anos. Muita gente está em pânico porque o país não cabe em seus manuais inteligentinhos, distribuídos em restaurantes étnicos.
Mas o assunto é sério. Vamos por partes. Entendo a ira dos "irmãos". Sentem que o "Cristo com seios" da Parada Gay é um desrespeito à figura santa -um pouco como os muçulmanos se sentem com as charges do profeta Maomé-, ainda que eu esteja seguro de que a bela transexual que fez a performance não quis com isso desrespeitar Cristo, pelo contrário, fez uma releitura teológica da função salvífica de Jesus.
Mas a pergunta que não quer calar é: cadê os inteligentinhos que escreveram artigos na época do "case 'Charlie Hebdo'", dizendo que deveríamos respeitar as religiões e as culturas alheias? Cadê a moçadinha café com leite que disse que a função da mídia é favorecer a integração cultural e evitar conflitos? Cadê os bonitinhos que disseram que os cartunistas não respeitaram o sacrossanto "outro"?
Cadê eles os que não saíram em defesa dos "irmãos" dizendo que não se deve brincar com a fé dos outros? Evangélicos não merecem o mesmo "respeito com o outro" que os muçulmanos? O fato é que essa gente inteligentinha é inconsistente mesmo, a menos que esteja falando de comida peruana. No fundo, são um poço de preconceito contra o cristianismo.
Entendo a ira dos evangélicos porque Jesus não era mulher, muito menos transexual. E eles pensam que "Cristo com seios" é contra sua concepção moral. Além da birra que eles tem com os gays.
Mas, lamento dizer, não concordo. A bela transexual não quis ferir o cristianismo. Sua teologia é consistente com uma tradição recente do cristianismo conhecida como Teologia da Libertação (TL). Cadê a moçadinha da "TL" que não defende essa lindinha?
Vamos esclarecer uma coisa. O judeu Jesus (mais tarde chamado Jesus Cristo) descende do profetismo hebraico. Esta corrente do Velho Testamento (a Bíblia Hebraica ou "Tanach", como falam os Judeus) se constitui em dura crítica social e política ao poder constituído. Esta crítica se sustenta na ética do Deus israelita, pautada pela busca de justiça contra os idólatras do poder dos reis, dos ricos e dos falsos deuses (os ídolos, daí, a idolatria).
Neste sentido, o significado da "libertação" é se colocar ao lado de todos que sofrem com o peso do poder do mundo a serviço da injustiça. A transexual apenas situou sua condição como sendo vítima do ódio do mundo a ela e aos iguais a ela. Fez teologia performática, e, com isso, deu um banho em muita gente com PhD que discute o sexo dos anjos por aí.


O debate, portanto, deve se dar no âmbito do significado do cristianismo e não apenas no âmbito dos "costumes". Se formos fazer uma discussão teológica, seremos obrigados, creio eu, a aceitar que existe sim na tradição cristã, assim como no profetismo hebraico, uma vocação iconoclasta de ferir o status quo e o coro dos contentes.
Entendo que os evangélicos e cristãos em geral se ofendam. Acho que a reação de orar no Congresso Nacional não cabe num estado laico. Mas gostaria de saber a opinião dos inteligentinhos, que sempre se mostram tão sensíveis aos terroristas islâmicos. Cadê a sensibilidade para com o justo mal-estar dos cristãos diante de uma teologia iconoclasta como a da transexual crucificada?
Esse blá-blá-bá de conservador x progressista cabe mais em discussão de centro acadêmico do que em conversa de gente grande. Essa oposição está bem desgastada e, muitas vezes, não dá conta da complexidade de nosso mundo selvagem.
Eu, pessoalmente, além de entender a proposta teológica dela, e achar que ela cabe num debate teológico consistente, achei a imagem de um erotismo selvagem. Sade ficaria de boca aberta. Nietzsche ficaria com tesão. A beleza da crucificada, associada à agonia do seu rosto, põe em diálogo três dimensões vulcânicas do ser humano: o sexo, o medo e a dor. Não vi só Cristo ali. Vi uma deusa em agonia. Essa linda vale uma missa.

Em Folha de São Paulo de 22 de junho de 2015.

domingo, 14 de junho de 2015

A GÊNESE DO IMPÉRIO DA LEI - 800 ANOS DA CARTA MAGNA

SYLVIA COLOMBO
ilustração FERNANDO VILELA

RESUMO Desavenças entre o rei John da Inglaterra e os então "homens livres", que viam seus direitos econômicos ameaçados pelos abusos do monarca, levaram à criação da Magna Carta. O documento, que impôs limites ao monarca, completa 800 anos e é objeto de comemorações e lançamentos no Reino Unido.
*
Na primavera de 1940, enquanto a Alemanha bombardeava Londres e outras grandes cidades britânicas, milhões de norte-americanos enfrentaram filas, em Nova York e em Washington, para ver de perto um dos quatro exemplares sobreviventes da Magna Carta britânica, documento escrito em 1215, em latim medieval, restrito a uma única folha com 54 linhas de texto em letras pequenas, protegido por um vidro grosso.
No ano seguinte, após o ataque a Pearl Harbor, os EUA decidiram entrar na Segunda Guerra, ao lado do Reino Unido e contra os nazistas. Antes de iniciar os ataques, a pedido dos britânicos, os norte-americanos embalaram cuidadosamente a Magna Carta e a levaram, com a Declaração de Independência e a Constituição dos EUA, à base militar de Fort Knox, no Estado de Kentucky, onde ficariam mais bem protegidas. De lá, o documento só voltaria ao Reino Unido após a derrota nazista e o fim do conflito.
"A Carta deixa de ser uma peça de museu e se transforma em um documento vivo, ainda muito influente, a partir do momento em que a consideramos como símbolo de uma liberdade ameaçada e de um conjunto de valores que acreditamos que deve ser mantido", diz à Folha, por telefone, o magistrado britânico Igor Judge.
"O gesto de britânicos e de norte-americanos de defenderem esses papéis durante a Segunda Guerra, diante da ameaça do totalitarismo nazista, mostra que nossa liberdade não pode ser considerada como algo gratuito e eterno se não tivermos claro no que ela está baseada", frisa Judge, que foi chefe do Judiciário da Inglaterra e do País de Gales entre 2008 e 2013.
Nesta segunda (15), a rainha Elizabeth 2ª encabeçará a comemoração do aniversário de 800 anos da Magna Carta, em Runnymede, um prado à beira do Tâmisa, nos arredores de Londres, onde o texto foi selado por seu distante antecessor no trono, o rei John (1166-1216).
Mais novo entre os cinco filhos de Henrique 2º, John entrou para a história com a fama de ter sido o pior e mais tirânico monarca da Inglaterra. São abundantes os relatos de prisões arbitrárias, confisco de propriedades, abusos sexuais e assassinatos. Foi, além disso, um fracasso militar, que perdeu importantes territórios (Anjou, Aquitânia e Normandia) e não conseguiu evitar que o país mergulhasse numa guerra civil.
Fernando Vilela
Preocupados com o clima de instabilidade e, principalmente, com os impostos altos e desregrados que John lhes impunha para financiar guerras e seu estilo de vida luxuoso, os barões do reino, nobres proprietários de terra, resolveram enfrentá-lo.
Acuado, o soberano aceitou comprometer-se com uma "carta de liberdades" –recurso que já existia na Europa para estabelecer os deveres e direitos de reis e proprietários de terra, principalmente quanto à cobrança de tributos e às regras de herança de patrimônio.
TERRA
"O que diferencia a Magna Carta das que vieram antes é o fato de ela colocar a lei acima de tudo. Até então, os reis deviam prestar contas apenas no céu, depois que morressem, e o que haviam prometido aos súditos não era honrado por ninguém. Após a Magna Carta, estabeleceu-se a ideia de que o rei presta contas na terra e, se não se comporta de acordo com seu juramento, pode perder o cargo", explica Judge.
A cláusula 61 da Magna Carta, a principal novidade em relação aos documentos anteriores, estabelecia que, se o rei agisse de forma arbitrária e desrespeitasse o texto, um conselho de 25 barões o notificaria e estaria autorizado a rebelar-se contra o monarca, podendo até mesmo assumir o controle do reino temporariamente.
A Carta também previa que os "homens livres" não poderiam ser presos sem um "julgamento justo", e a Justiça não poderia tardar a ser aplicada. Estipulava, ainda, que as penas deveriam ser correspondentes à gravidade dos crimes.
É importante ressaltar que eram considerados "homens livres" apenas aqueles que recebiam terras do rei para cultivá-las, devendo pagar impostos, prestar serviços e auxiliar nas guerras. Correspondiam a menos de 20% da população. O restante, em sua maioria, era composto por camponeses vinculados às terras em que trabalhavam.
"É preciso reforçar que a Magna Carta tratava dos interesses daqueles que possuíam terras. Sobre esses camponeses, o documento não diz nada. Sim, eles tinham acesso à Justiça, mas apenas à Justiça local, proporcionada por seus senhores", ressalta o medievalista Stephen Church, da universidade de East Anglia.
Inicialmente, a Carta não teve efeito e nem sequer foi útil para manter a paz. O rei John imediatamente buscou apoio do papa Inocêncio 3º, que a declarou nula por ser "ilegal, injusta, prejudicial aos direitos reais e vergonhosa para os ingleses". Os barões, então, incitaram o príncipe Luís, filho do rei da França, a invadir a Inglaterra –e a guerra se instalou.
Porém algo de substancial havia mudado para sempre na relação de um monarca com seus súditos.
Em 18 de outubro de 1216, John morreu de disenteria. Henrique 3º, seu filho, que assumira aos 9 anos de idade, sem outras opções para garantir a paz, revisou e reeditou a Magna Carta durante seu reinado.
O documento recebeu alterações em 1216 e 1217, ainda durante a minoridade do novo monarca. Mas foi a versão lançada em 1225 aquela que se tornaria, por fim, célebre internacionalmente. Henrique 3º deixou claro que o texto fora, daquela vez, concebido e firmado sem coerções e que era entregue após o pagamento consensual de imposto por parte de todos os "homens livres" de então.
"Foi no século 17 que a Carta ganhou grande relevância. O Parlamento fez uso dela para conter o rei e venceu. Se o rei tivesse vencido, a história desse documento medieval poderia ser outra. Com a vitória do Parlamento, a Magna Carta passou a ser vista como uma pedra fundacional do mito da continuidade da liberdade inglesa", explica o historiador Modesto Florenzano, da Universidade de São Paulo.
O documento, de fato, foi amplamente citado na tentativa de deter as ambições do rei Carlos 1º (1600-49), que desejava ampliar os poderes monárquicos com base no conceito de "direito divino". Parlamentares e magistrados, como o juiz Edward Coke (1552-1634), usaram a Carta para tentar subjugar o rei à lei. A Inglaterra logo entraria numa guerra civil, que terminaria com a execução de Carlos 1º, em 1649.
EXAGEROS
Desde então, a Magna Carta serviu de inspiração e referência em diferentes processos de mudança política e contenção da tirania, como a Revolução Francesa (1789) e a Independência norte-americana (1775-83). Ela passaria a representar uma espécie de constituição ancestral e fundamento original da ideia de igualdade de todos perante a lei, da garantia das liberdades civis, do atual sistema judiciário britânico e até mesmo da própria democracia. Aqui, é prudente evitar alguns exageros.
Fernando Vilela
Historiadores britânicos fazem ressalvas quanto ao que chamam de "totemização" do documento e às interpretações que consideram anacrônicas. "A Magna Carta não inaugurou a democracia. Não criou o julgamento feito por um júri, nem a presunção de inocência, nem o habeas corpus [garantia individual para quem sofrer ou estiver ameaçado de sofrer restrição à sua liberdade de locomoção], nem as liberdades individuais, nem muitas outras coisas que são associadas a ela por pessoas que jamais leram de fato o documento", diz Nicholas Vincent, autor de "Magna Carta - Origins and Legacy" [The Bodleian Library, 160 págs., 20 libras na Amazon.co.uk].
"Ainda assim", frisa Vincent, "ela realmente merece ser celebrada, por ter estabelecido, pela primeira vez, o princípio de que ninguém está acima da lei, nem mesmo o rei. Estabelece que todos os acusados de terem agido mal devem ser julgados de maneira apropriada de acordo com a lei, a ideia de que a Justiça deve atuar de forma livre e, ainda, que a gravidade da punição deve refletir a gravidade do crime".
Vincent lembra que a revolta dos barões teve motivações essencialmente financeiras. "O dinheiro foi o principal motor. Era um momento de inflação severa, durante o qual os barões vinham enriquecendo e tornando-se mais autoconfiantes, os pobres continuavam sendo oprimidos, e o rei vinha declinando como autoridade econômica. As cláusulas financeiras da Carta são dedicadas a beneficiar a pequena elite econômica do país. Havia uma preocupação enorme quanto a regulamentar as heranças, pois era muito comum que o rei expropriasse terras e propriedades de um nobre, depois que este morria. Os camponeses, mais de 80% da população, não têm absolutamente nenhuma menção na Carta."
Judge explica como um documento voltado a proteger interesses financeiros de uma elite veio a se transformar num símbolo da liberdade. "A Carta menciona a ideia de 'direitos', ainda que se referindo apenas a um pequeno grupo. Havia poucos 'direitos' então. Porém, a Carta criou uma estrutura, naquele momento longínquo de nossa história, à qual, conforme esses direitos fossem surgindo, podiam ser incorporados."
Para o magistrado, a novidade foi ter começado a estabelecer, aos poucos, o raciocínio: "Se pago impostos, posso fazer parte das decisões". "Isso evoluiu com a história. Aos poucos, mais e mais aspectos foram parecendo incongruentes: 'Se pago imposto, por que não voto?', 'por que existe servidão?', 'por que uma mulher não tem os mesmos direitos que um homem?', 'um imigrante tem direitos?' E assim por diante."
"Foram preocupações surgidas depois, em seus determinados contextos, mas que encontraram na Carta uma base que permitia essas reflexões. Essa é a diferença crucial da Magna Carta com relação a juramentos ou Cartas que existiram antes", conclui Judge.
VIÚVA
Interpretações contemporâneas, de fato, veem na carta prelúdios do feminismo. Uma de suas cláusulas diz: "Uma mulher deve receber sua herança, após a morte do marido, sem dificuldades". Isso porque era comum, na época, que o rei confiscasse os bens do morto e entregasse apenas uma parcela à viúva. Mas a Carta avança um pouco mais: "Nenhuma viúva deve ser forçada a casar se ela preferir viver sem um marido".
De todas as 63 cláusulas do documento, apenas três estão ainda em uso tal qual foram formuladas. Uma é a que garante liberdades e direitos da Igreja da Inglaterra. A outra confirma as liberdades da cidade de Londres, mas a mais famosa é a número 39:
"Nenhum homem livre será perseguido ou aprisionado, ou será privado de seus direitos e posses, ou posto fora da lei ou exilado, nem usaremos de força contra ele, sem o devido julgamento de seus iguais ou pela lei da terra."
Para Judge, "não é correto dizer que esse artigo introduziu a noção de habeas corpus ou de julgamento por um júri, ideia que se popularizou no século 17, mas é vital para entender a transformação da relação do rei com seus súditos".
"É preciso reforçar que o essencial da Magna Carta é a ideia de que a lei está acima de tudo, e o direito de qualquer cidadão sem poder de criticar ou mesmo mover uma ação de 'impeachment' contra seus líderes políticos ainda é de grande importância, e viajou para a América, de norte a sul", frisa Vincent. "Usada como totem ou ícone, a Magna Carta ainda é relacionada à ideia de liberdade e de direito à Justiça, mesmo que a linha que conecta essa interpretação aos fatos de 1215 seja tênue."
ESTUDOS
O oitavo centenário da Magna Carta está sendo marcado, entre outras comemorações, pelo lançamento de alguns estudos que projetam nova luz sobre os acontecimentos de 1215.
Um deles é "King John and the Road to Magna Carta" [Basic Books, R$ 63,54, em e-book na Amazon.com.br], do historiador Stephen Church. Em conversa com a Folha, ele diz que o rei John, imortalizado por Shakespeare numa peça de mesmo nome, foi demonizado pela historiografia.
"Não digo que não tenha sido um tirano, mas o que se escreveu sobre ele esteve marcado pelo sentimento da época. Tento entendê-lo em seu contexto, que é o de um mundo bastante selvagem, em que as relações eram atravessadas pela violência e a autoridade se exercia com brutalidade."
O recente sucesso da série televisiva "Game of Thrones" faz pensar num paralelo entre o rei John e o abusivo rei Joffrey, da atração de aura medieval baseada nos livros de George R. R. Martin. "Meu filho sempre me diz que eu deveria ter escrito 'Game of Thrones', em vez de um livro chato de história sobre o rei John", comenta Church.
"Em ambos os casos, eles cometeram excessos e provocaram rebeliões", diz. O paralelo, porém, se encerra aqui. "Reis na Idade Média não eram como os de 'Game of Thrones' porque a série é uma paródia da Idade Média, desenhada para entreter uma audiência moderna que tem algumas ideias de como a Idade Média pode ter sido."
Ainda para celebrar a data, a artista britânica Cornelia Parker recrutou um time composto de nomes famosos e presidiários para bordar uma versão do verbete "Magna Carta", da Wikipedia, numa peça de 13 metros de comprimento, encomendada pela British Library para as comemorações.
Além de convocar especialistas dessa arte manual, como membros da Embroiderer's Guild, Parker convidou Julian Assange, dos WikiLeaks, Edward Snowden, ex-agente que revelou instrumentos de espionagem do governo norte-americano, e o cantor Jarvis Cocker para bordarem palavras. O ex-editor-chefe do jornal "The Guardian", Alan Rusbridger, literalmente deu um pouco de seu sangue ao trabalho: ao bordar um tópico, furou o dedo, e os respingos ficaram visíveis na obra final.
A British Library também montou uma exposição, em cartaz até setembro, de documentos e objetos de época que celebram a Magna Carta. Atualmente, sobrevivem quatro cópias do documento –não existe uma original; uma vez que eram produzidos exemplares suficientes para que a lei fosse distribuída pelo reino, estima-se que tenham sido confeccionadas, em 1215, cerca de 40 cópias. "Aqui na British Library temos duas. Uma foi danificada por um incêndio, em 1731, e a outra encontrada no século 18, numa alfaiataria", conta o curador Julian Harrison.
As comemorações se encerram em 31 de julho, quando um julgamento será encenado por magistrados de toda a Commonwealth, liderados por lorde Neuberger, presidente da Suprema Corte britânica. No evento, serão reunidos argumentos de acusação e defesa para decidir se os barões estavam agindo de acordo com a lei ao se rebelarem contra o rei John. O espetáculo, gratuito, durará duas horas e ocorrerá em Westminster.
"Será mais do que um show temático sobre o episódio. Os magistrados examinarão questões atemporais de importância legal e constitucional: o rei está acima das leis? Existe defesa para quebrar um pacto como o que os barões tinham com o rei?", diz Robert Worcester, chefe do comitê de organização dos festejos de 800 anos do documento.
 
SYLVIA COLOMBO, 43, é repórter especial da Folha.
FERNANDO VILELA, 41, é artista plástico, designer e autor de, entre outros, "Lampião e Lancelote" (Cosac Naify).
 
Reprodução de reportagem em ilustríssima, Folha de São Paulo, de 14 de junho de 2015.
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quinta-feira, 2 de abril de 2015

DOZE RAZÕES PARA DIMINUIR A MAIORIDADE PENAL

Por Jorge Alberto Quadros de Carvalho Silva

1) Se o adolescente de 16 ou 17 anos pode votar para presidente da República, por que não teria discernimento para entender o caráter ilícito do crime? Sem tem discernimento, por que não responder penalmente? Qual a lógica de considerar Suzane Richthofen irresponsável penal, ou inimputável, se tivesse mandado matar seus pais a paulada um dia antes de completar 18 anos?
2) Se a preocupação é com a lotação das cadeias ou com a "escola do crime", então por coerência, por que não subir a maioridade para 21 ou 23 anos? Segundo essa lógica, as pessoas até 23 anos estariam menos propensas a se enveredar no crime quando soltas e teríamos, assim, mais vagas em presídios.
3) Se a preocupação é com a lotação das cadeias, devido à absorção de um novo público com faixa etária de 16 a 18 anos, por outro lado não é verdade que a Fundação Casa (antiga Febem) perderia esse mesmo público, abriria mais vagas e teria condições melhores para lidar com os adolescentes menores de 16 anos?
4) Se a Constituição da República não colocou a regra da responsabilidade penal aos 18 anos no artigo 5º, que trata dos direitos e garantias individuais, mas o fez no art. 228, por que considerá-la cláusula pétrea, ou seja aquela cláusula da Constituição que não permite emenda constitucional que restrinja direitos e garantias individuais (art. 60, §4, IV)?
5) Se 8 anos de social-democracia com o governo Fernando Henrique e 12 anos de "socialismo" com o governo do PT não foram capazes de diminuir a criminalidade, que, ao invés disso, aumentou muito no País, por que então continuar acreditando que a solução para isso está somente na educação, mesmo sabendo que uma coisa não exclui a outra?
6) Se o governo "socialista" do PT se orgulha de ter melhorado muito o padrão da população carente nos últimos 12 anos, então como explicar o grande aumento da criminalidade. Você ainda acredita que a simples melhoria do nível econômico do povo, por si só, faz a criminalidade cair?
7) Por que os críticos da redução da criminalidade sempre falam que não adianta a redução, se o que queremos não é apenas dissuadir as pessoas de 16 e 17 anos de praticarem crimes, mas, sobretudo, torná-las responsáveis por seus atos? A redução que se quer está baseada num princípio ético, cuja aplicação visa diminuir a sensação de impunidade, grande chaga da sociedade brasileira.
8) Por que em muitos países a responsabilidade penal começa aos 16 nos e no Brasil não pode ser assim?
9) Por que se preocupar com que o adolescente de 16 e 17 anos, que cometeu estupro e homicídio com tortura (lembra do Champinha?), não seja marginalizado numa prisão, se ele já é um marginal?
10) Por que não temos o direito de ver a fotografia nem de saber do nome de um adolescente de 16 e 17 anos que cometeu um crime hediondo (os críticos da redução chamam isso de ato infracional!), a fim de nos preservarmos contra futuros atos dessa mesma pessoa?
11) Por que os críticos da redução da maioridade penal preocupam-se em demasia com a recuperação do criminoso (crime é doença?), se o direito penal, antes de tudo, tem caráter repressivo, retributivo, dissuasório e pedagógico?
12) Se o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/1990, nos seus 25 anos de vigência, demonstrou enorme inadequação com a realidade do crime, ao permitir a internação de um homicida de 17 anos somente até os 21 anos, por que não dar chance à mudança?

domingo, 8 de março de 2015

FEMINICÍDIO?

(Editorial da Folha de São Paulo de 07.03.2015)

A denominação já sugere haver algo de polêmico e de extravagante na proposta. O termo ganha notoriedade, contudo, após a aprovação, pelo Senado e agora pela Câmara, de mudança legislativa tornando mais severas as penas para o assassinato de mulheres, quando motivado por razões de gênero.
Cabe analisar em detalhe a proposta, que depende apenas da sanção da presidente Dilma Rousseff (PT) para alterar o Código Penal.
O artigo 121 desse diploma determina pena de seis a 20 anos de reclusão para quem matar uma pessoa. Em seu parágrafo segundo, descreve cinco circunstâncias especiais nas quais a sanção vai de 12 a 30 anos de reclusão.
A ideia do feminicídio implica introduzir uma sexta hipótese: a pena será aumentada quando houver, no assassinato, "razões de gênero" contra a mulher. Entende-se por isso a presença de uma situação de "violência doméstica e familiar" ou de "menosprezo ou discriminação à condição" feminina.
É indiscutível que o assassinato de uma mulher pode conter componentes especiais de covardia e brutalidade; por certo o ciúme paranoico ou a fúria imotivada tornam odioso o ato homicida do marido contra a companheira.
Tais circunstâncias já estão, todavia, contempladas pela legislação vigente. Motivo fútil, dificuldade de defesa, crueldade –não faltam mecanismos para punir com severidade o "feminicida".
O conteúdo extravagante da inovação saltaria aos olhos se, por exemplo, o Congresso estendesse seu populismo para criar também as figuras do "homocídio", do "indigenticídio" ou do "silvicolicídio". Não são poucos os grupos vulneráveis numa sociedade como a brasileira –e se há um estrato especialmente exposto à violência é o de jovens pretos e pardos.
Numa perspectiva inversa, e por certo absurda, ninguém haveria de dizer que o homicídio de pessoas em particular situação de força deva ser apenado com menos rigor.
Também soam absurdos os desdobramentos teóricos da medida. Fixar pena maior para o assassinato de uma mulher significa considerá-lo mais grave que o de um homem. O sexo feminino, então, seria mais frágil? Ou a vida masculina teria um valor menor?
São paradoxos implausíveis, sem dúvida. Inerentes, contudo, a toda iniciativa legal em que se substitui o princípio da universalidade pela política das diferenças, feita de atenções a especificidades sociais que se multiplicam ao infinito.
Ainda que se tente acompanhá-las, a minúcia crescente da lei não é garantia de que, na prática, a justiça seja feita. Ao contrário, o endurecimento penal ao sabor das pressões quase nunca ajuda a prevenir o crime, mas sempre acrescenta distorções ao ordenamento jurídico.

segunda-feira, 2 de março de 2015

O INTELECTUAL ANTICAPITALISTA

Aquilo que parece inquietar o intelectual anticapitalista não é tanto o mérito ou demérito da "sociedade comercial" de um ponto de vista meramente econômico. À esquerda e à direita, o que perturba verdadeiramente os "engenheiros das almas" é a perda de reverência por qualquer teoria explicativa geral capaz de captar a complexidade da vida social e de prescrever uma solução última para as suas várias iniquidades. A mentalidade monista do intelectual secular convive mal com indivíduos que procuram livremente os seus fins de vida sem atenderem às recomendações paternalistas e tantas vezes autoritárias de uma elite política, filosófica ou religiosa. (IRVING KRISTOL in As ideias conservadoras, COUTINHO, João Pereira, São Paulo: Três Estrelas, 2014, p. 90).


domingo, 1 de março de 2015

A MÓRBIDA HISTÓRIA DA OBSESSÃO PELOS ZUMBIS

POR OTÁVIO FRIAS FILHO

RESUMO Sucessor de "Frankenstein" e "Drácula" no imaginário macabro, o mito dos zumbis, originário do Haiti, ganhou fôlego no cinema e nos quadrinhos. A série "The Walking Dead", exibida no Brasil às segundas-feiras, às 22h30, pelo canal Fox, é o mais recente e desenvolvido produto da proliferação cultural dos mortos-vivos.
*
A série de TV paga "The Walking Dead" é o produto mais recente -e mais desenvolvido, ao entrar há três semanas na segunda parte do quinto ano- de uma epidemia cultural: a obsessão por zumbis. Tem sido vertiginosa, nas últimas décadas, a proliferação de filmes, séries televisivas, histórias em quadrinhos, paródias e videogames em torno desse tema bizarro.
Quando certa mitologia irrompe e se dissemina assim, não demoram a aparecer interpretações que a associam ao espírito da época. As histórias de zumbi devem expressar, em termos de entretenimento ou arte pop, alguma angústia essencial, inconsciente e coletiva que atravessa fronteiras. À sombra das produções comerciais, surgiu uma ensaística, sobretudo nos departamentos norte-americanos de estudos culturais, voltada a essa dissecação.
Terrorismo, minorias, fanatismo religioso, a exaustão ambiental, a massa de excluídos ou a própria sociedade de consumo -as mais diversas figuras de medo social e crítica política já foram projetadas sobre a superfície amorfa, passiva e plástica das hordas perambulantes de zumbis. É como se este fosse um mito-ônibus em que coubessem todos os significados. Sugestivo, aliás, que sua ameaça imaginária ocorra numa era de superpopulação global e de frequência inédita nos contatos com a alteridade étnica, por causa da popularização das viagens internacionais, das migrações e da internet.

Frank Ockenfels 3/AMC 
Cena de episódio da quinta temporada da série "The Walking Dead", adaptação de HQ lançada em 2003
Cena de episódio da quinta temporada da série "The Walking Dead", adaptação de HQ lançada em 2003
 
Como o medo do "outro", o temor aos mortos é generalizado entre as culturas. Parece plausível considerá-lo resquício evolutivo que premia comportamentos de aversão à matéria orgânica decomposta, propícios a reduzir os riscos de contágio e intoxicação. Como esse temor costuma ser esconjurado por rituais para aplacar a suposta ira dos mortos, a tradição psicanalítica passou a compreendê-lo como manifestação de culpa pelos desejos inconscientes de matar nossos semelhantes, a começar por um dos progenitores.
No terreno da mitologia macabra, os dois antecessores das histórias de zumbi têm raiz literária. "Frankenstein" (1818), da inglesa Mary Shelley, considerada a primeira obra de ficção científica, explora uma vertente do romantismo, a novela gótica, com suas atmosferas tumulares e motivos fantásticos. Na aurora da Revolução Industrial, o livro induz à ideia de que o homem, violando seus limites quando usurpa o papel divino para manipular a natureza por meio da tecnologia, chamava a si uma sinistra punição. Desde então, a ficção científica reteve esse caráter romântico, reacionário até, na medida em que hostil ao progresso material.
"Drácula" (1897), do irlandês Bram Stoker, é uma história tardia do mesmo gênero, mas seu protagonista, diferente da criatura feita com pedaços de cadáver cerzido que uma descarga elétrica devolve à vida, é um aristocrático vampiro romeno a que não faltam artes de sedução hipnótica e voraz -o que reflete as irrupções de uma sexualidade tão reprimida quanto mal velada, própria do período vitoriano, a época de Freud. Embora o americano H.P. Lovecraft, celebrado autor de histórias fantásticas, tenha deixado uma novela sobre mortos-vivos ("Herbert West - Reanimator", 1922), o gênero surgiu mais tarde, no cinema e nos quadrinhos.
AFRO-AMERICANO
Também em contraste com "Drácula" e "Frankenstein", que se nutriam do folclore europeu, o mito dos zumbis é afro-americano, originário do Haiti. Em 1929, o jornalista William Seabrook publicou um livro de viagens pseudo-etnográfico sobre aquela metade ocidental da ilha caribenha, "The Magic Island". Relata ali que legiões de mortos, ressuscitados por sortilégio, trabalhavam nas plantações de feiticeiros haitianos. O próprio autor ventila uma explicação racional, ao supor que tais latifundiários conhecessem alguma substância capaz de induzir pessoas vivas a um estado catatônico que possibilitava escravizá-las.
Essa crença percorria camadas de ressentimento. A ressurreição dos mortos era vinculada na ilha às sucessivas revogações da abolição depois da Revolução Haitiana de 1791, a única revolta de escravos vitoriosa na história. Movidos pelo interesse de explorar e assegurar abastecimento de açúcar e café produzidos no Haiti, os Estados Unidos mantiveram o país sob ocupação militar entre 1915 e 1934, sustentando um governo fantoche na capital, o que terá dado ensejo às habituais reações de medo e culpa nas camadas mais sensíveis da sociedade invasora. O livro de Seabrook inoculou, assim, a mania de zumbis na cultura popular americana.
Em 1932, estreou nos cinemas "White Zombie", baseado na história. Bela Lugosi, ator de origem húngara que havia encarnado o conde Drácula num filme famoso no ano anterior, faz o papel do feiticeiro. Roteiro e diálogo soam hoje ingênuos, e os efeitos, como se pode imaginar, tosquíssimos; Lugosi é um canastrão experimentado que causou calafrios nas plateias da época ao perfurá-las com seu olhar captado num insistente primeiro plano.
A partir daí o mito entra em latência, encerrado na subliteratura e nos quadrinhos onde continua, por assim dizer, morto-vivo.
Os anos 50 acarretaram uma vaga de medo histérico que respondia a duas ameaças igualmente insidiosas, invisíveis e fulminantes: a radiatividade e o comunismo (figurado muitas vezes na forma de "marcianos", invasores do planeta vermelho). Esse clima reanimou as histórias de zumbi, que se tornaram mais "científicas". No livro "Eu Sou a Lenda"(1954), Richard Matheson imagina certa mutação, causada por acidente radiativo, que converte parte da humanidade numa nova espécie biológica, Homo vampiris. No filme "Zombies of Mora Tau" (1957), pela primeira vez o contágio é abordado numa perspectiva epidemiológica.
'KANE' DOS ZUMBIS
Mas foi somente no simbólico ano de 1968 que apareceu "Night of the Living Dead", ("A Noite dos Mortos-Vivos"), considerado o "Cidadão Kane" dos filmes de zumbi. Nessa obra e nas cinco que se seguiram, o diretor George Romero (tendo por corroteirista, no início, John Russo) criou o mito do zumbi moderno, fixando em imagens seu léxico e sua gramática.
A cena se passa na mais familiar paisagem de subúrbio americano, à maneira das histórias de terror de Stephen King. A mordida dos zumbis propaga o contágio, e eles se revelam canibais também. Seus corpos se apresentam em estágios patéticos de deterioração; seu avanço rumo às vítimas é lento e trôpego (o que permite esticar as cordas do suspense), mas inexorável, pois tendem a se agrupar numa multidão arfante, sôfrega, invencível. Não têm consciência nem enxergam, parece, mas ouvem bem demais.
Romero não se ocupa das causas de seu apocalipse, adotando com displicência a convenção do efeito mutante. Os especialistas gostam de citar a frase de uma personagem de seu filme "Dawn of the Dead" ("O Depertar dos Mortos", 1978) que, quando alguém indaga sobre quem são os zumbis, responde apenas: "Somos nós". O interesse da trama está mais focalizado nos sobreviventes do que nos seus perseguidores -ou antes no que a perseguição faz aflorar naqueles. Pois a procissão de mortos não deixa de ser um espelho escancarado diante dos vivos, que também zanzam em desespero, jogados da noite para o dia num mundo hobbesiano sem lei nem ordem onde a vida é "solitária, pobre, má, brutal e curta".
Apesar da força imaginativa, os filmes de Romero nunca deixaram de ser rudimentares produções B; há algo de Ed Wood no seu sangue de tomate, nas locações improvisadas, na maquiagem amadorística. Outros autores e cineastas seguiram seu exemplo, procurando refinar seu estilo, tornando mais dinâmicos os roteiros e melhor a sua consecução. O ápice dessa evolução é "Guerra Mundial Z" (2013), baseado no romance de Max Brooks e dirigido por Marc Forster -na opinião deste resenhista, o mais satisfatório dentre os filmes do gênero.
FRENÉTICOS
Acostumados à lentidão exasperante dos zumbis, ficamos estarrecidos quando, na frenética sequência inicial, o primeiro deles se atira com fúria sobre um carro, quebra o para-brisa a cabeçadas e investe num átimo contra seus ocupantes. O cinema contemporâneo impõe seu ritmo aos cadáveres desengonçados. Pelo meio do filme, é memorável a cena em que milhares de zumbis se amontoam como formigas fervilhantes até transbordar para dentro de um imenso muro, erigido em torno de Jerusalém no vão esforço de isolar a cidade sagrada.
Em entrevista recente, o diretor brasileiro Fernando Meirelles identificou o cinema com o conto e a série de TV com o romance. "The Walking Dead", que estreou em 2010, foi concebida para o canal AMC por Frank Darabont a partir das histórias em quadrinhos de Robert Kirkman e Tony Moore, publicadas desde 2003. A série tem a excelência técnica de "Guerra Mundial Z". Com mórbido detalhismo, sua cosmética mimetiza a putrefação em toda a terrível variedade de suas cores e formas. Na primeira vez em que alguém espatifa o crânio de um zumbi (única maneira, nas convenções do gênero, de matá-lo em definitivo), o efeito é tão repugnante que a tentação é desligar; na trigésima, você se pega bocejando.
Dada a imensidão de horas disponíveis, porém, a série não se reduz aos horripilantes confrontos entre vivos e mortos, que acontecem quase sempre à luz do dia. Intercaladas com eles, quando as personagens -um bando de sobreviventes que se mantém mais ou menos unido- conseguem pernoitar a salvo num abrigo seguro como uma penitenciária ou igreja abandonada, surgem passagens intimistas nas quais vivem os dramas hobbesianos que opõem o interesse de cada um e a lealdade para com o grupo, em guerra com outros grupos. Os roteiristas têm tempo e fantasia para compor um sombrio tecido psicológico de dilemas, traições, alianças, condutas sublimes e abjetas. Ao longo dos episódios, cada protagonista adquire uma vida intensa e pessoal.
Afinal de contas, trata-se da celebração da vida. Despojada de toda crença transcendental -na pátria, na ideologia, na vida eterna, nos valores tradicionais-, certa de que nada mais existe além do hedonismo calculista do aqui-e-agora, a mentalidade da nossa época está livre para assassinar os defuntos e tripudiar sobre a morte.
OTAVIO FRIAS FILHO, 57, é diretor de Redação da Folha, autor de "Queda Livre" (Companhia das Letras, 2003) e "Cinco Peças e Uma Farsa" (Cosac Naify, 2013).
 
*Publicado no jornal Folha de São Paulo, em 01.03.2015, caderno Ilustríssima, p.3.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

REACIONÁRIO

"O reacionário não será mais do que um 'revolucionário do avesso', alguém interessado em efetuar um corte semelhante com o 'riso presente', de forma a precipitar a sociedade, não para uma 'felicidade utópica' futura, mas para uma 'felicidade utópica' passada". (Anthony Quinton in As Ideias Conservadoras, João Pereira Coutinho, São Paulo: Três Estrelas, 2014, p. 24-25).)

PRECONCEITO

"Os 'preconceitos' que interessam a um conservador não podem ser entendidos, ou confundidos, com meras ideais irracionais sobre determinados comportamentos, minorias ou indivíduos — o sentido atual e rasteiro do termo. Se todas as palavras também têm uma tradição, importa recordar que 'preconceito' deve ser entendido no sentido clássico, ou seja, como 'prejudicium' — um precedente ou um julgamento baseado em decisões ou experiências passadas que, pela sua validade comprovada, informam decisões ou experiências presentes e futuras" (Burleigh Taylor Wilkins in As Ideias Conservadoras, João Pereira Coutinho, São Paulo: Três Estrelas, 2014, p. 64).

domingo, 25 de janeiro de 2015

CONSERVADOR

"Ser conservador é preferir o familiar ao desconhecido, o testado ao nunca testado, o fato ao mistério, o atual ao possível, o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao abundante, o conveniente ao perfeito, o riso presente à felicidade utópica".
(Michael Oakeshott in As Ideias Conservadoras, João Pereira Coutinho, São Paulo: Três Estrelas, 2014, p. 22).