Balança & Espada

"A justiça tem numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força bruta; a balança sem a espada é a impotência do direito" (JHERING)



Jurisprudência

sábado, 14 de maio de 2016

ESSA BELEZA FRÁGIL E IMENSA

Por Luiz Felipe Pondé

Você já se sentiu infinitamente pequeno diante de algo imenso e infinito? Já percebeu o quão frágil é tudo à sua volta, inclusive, e principalmente, você? Já pensou que um dia o sol se apagará e tudo que você conhece deixará de existir?
Já pensou que em meio a tantas pessoas que transaram desde a mais distante ancestralidade humana, a "cadeia de orgasmos" entre elas é a causa eficiente da sua existência hoje? Já imaginou quanta coisa podia ter dado errado e você não existir? Aqui não estamos muito distantes do silêncio que muitas vezes se impõe quando testemunhamos uma criança vir ao mundo. Esse silêncio é nossa consciência ancestral de que devemos nossas vidas a todos os que viveram, lutaram e morreram antes de nós. A primeira palavra que devíamos aprender a falar é "obrigado". Uma cultura que não cultiva o respeito pelos ancestrais é uma cultura de ingratos. Deveríamos assistir ao parto de joelhos.
Bastava uma dorzinha de cabeça numa das fêmeas ancestrais ou uma brochada num dos machos ancestrais ou um dos dois ser comido por algum predador, e você não estaria hoje aqui lendo a Folha.
Logo, é quase um milagre esse instante em que nos encontramos. Assim como toda a cadeia de eventos que envolve a sua vida e a de cada um de nós.
Diante de tantas variáveis infinitas, muita gente sente um certo agradecimento por ter nascido e pelas coisas que giram à nossa volta, tornando possíveis nossas vidas.
Nossa atitude deveria ser uma de completa reverência diante de tudo isso. Esse tipo de reverência desapareceu do nosso repertório porque somos uns mimados que acham que o universo é "um direito" cósmico. E que todos que transaram em nossa longa cadeia de ancestrais o fizeram "por nossa causa".
Essa humildade diante da simples existência não é muito distante da ideia de graça no cristianismo (e também no judaísmo e islamismo). Dai que qualquer teólogo competente sabe que toda boa teologia começa agradecendo. Coisa pouco comum hoje em dia. Uma sociedade dominada pela ideia de "direitos" é necessariamente uma sociedade que cultiva a ingratidão. Nada mais distante da espiritualidade semita (das três religiões abraâmicas citadas acima) do que uma teologia que "pede". A teologia começa agradecendo o fato de respirarmos. Ou, como diria Santo Agostinho (354-430), devemos agradecer pela língua que temos para falar.
Toda espiritualidade séria começa com a consciência do quão improvável é a nossa existência e a de todas as demais coisas à nossa volta. A fina relação entre essa enorme improbabilidade e nossa ínfima existência é que produz o sentimento de milagre, agradecimento e graça.
Que nenhum ateu inteligentinho queira me dar uma lição de estatística ou de acaso cego. Guarde-as para ateus inseguros e de alma tosca. A cegueira do acaso apenas torna a beleza do mundo ainda maior.
O que vem a ser a religião? Essa pergunta não é fácil de responder. Muitos tentam buscar uma resposta que sirva pra todas as religiões, mas isso não é evidente.
Entretanto, existem algumas ideias interessantes sobre essa busca de um "denominador comum" para as religiões que funcionam razoavelmente bem. E algumas delas passam justamente por esse sentimento de agradecimento pelo simples fato de sermos capazes de testemunhar toda essa beleza, ao mesmo tempo frágil e imensa. E de nos sentirmos de alguma forma dependentes dela.
O teólogo alemão Friedrich Schleiermacher (1768-1834), fundador da hermenêutica, disciplina que estuda os modos de interpretação de culturas e textos, é considerado o pai fundador dos estudos não religiosos das religiões. A história desses estudos é longa e não vou me ater a todas as controvérsias que a matéria exige.
O que me interessa aqui é o "denominador comum" que Schleiermacher pensava estar presente em todas as religiões. Para ele, as religiões são o fruto dessa percepção profunda de nossa dependência para com esse infinito que nos sustenta e, ao mesmo tempo, nos lembra o quão efêmero isso tudo é. Como o pó que se vai com o vento, mas que é capaz de ver o rosto de Deus.

Publicado em jornal Folha de São Paulo de 29 de fevereiro de 2016, ilustrada, C6

sábado, 26 de março de 2016

RACISMO

POR JORGE QUADROS

O racismo hoje virou a ideologia do oportunista que, por meio da vitimização, quer obter alguma vantagem que seu mérito não é capaz de lhe proporcionar.


IMPEACHMENT, CPI E JUDICIÁRIO

POR JORGE QUADROS

É muito interessante verificar que o impeachment dessa vez não é resultado de uma CPI, ou Comissão Parlamentar de Inquérito, mas de uma investigação judicial de primeira instância. O impeachment de Collor decorreu de uma CPI. Parece que as CPIs perderam seu significado e sua importância dada a corrupção generalizada no Congresso. Hoje até a oposição participa de arquivamento de CPIs. Cada vez mais acredito que no Judiciário como único Poder capaz de sustentar a República. Longe de qualquer tipo de ativismo ou voluntariosidade, o Judiciário está sendo obrigado a protagonizar papéis descartados por seus primeiros titulares.



LISTA DA ODEBRECHT

POR JORGE QUADROS

Hedionda é a lista da maior empreiteira do País, contendo doações para 316 políticos de 24 partidos, ainda que seja para fim eleitoral! Repulsiva porque demonstra inequivocamente que o financiamento eleitoral, por empresas e pessoas jurídicas, compromete não só a legitimidade das eleições, como também todo o poder da administração pública de, nas licitações de obras públicas, buscar o preço mais vantajoso para o contribuinte. Aliás, o caráter "democrático..." da lista, que também possui doações a políticos comunistas e socialistas, demonstra que as doações, na verdade, são puro investimento financeiro, com expectativa assegurada de retorno em obras superfaturadas tão logo o político seja eleito. Ainda que se refiram a doações eleitorais, digo que a lista não deixa de ser uma lista criminosa. Uma lista que indica um esquema maior de corrupção envolvendo não só a Odebrecht, mas todas as grandes empreiteiras do País. Por isso, existe necessidade urgente de acabar com o financiamento de campanhas por pessoas jurídicas, como empresas e sindicatos. Ou então, garantir-lhes o direito, mas proibi-los de contratar com o Poder Público durante o período do mandato do donatário. A lista da Odebrecht representa a corrupção que assola o Brasil.



domingo, 20 de março de 2016

SEM FUTURO

Por Ferreira Gullar.

Durante meus 70 anos de observação da vida política brasileira, não me lembro de ter visto tanta gente nas ruas manifestando-se contra um governo. E não apenas para protestar contra esta ou aquela medida considerada inaceitável. Não, as manifestações do último domingo (13) exigiam o impeachment da presidente Dilma Rousseff e a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Essas manifestações, que se alastraram por todo o país, desde as grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, a capital da República e demais capitais até as médias e pequenas cidades do interior dos Estados.
Outro aspecto a destacar é o fato de que tais manifestações não foram convocadas nem organizadas por partidos políticos mas, ao contrário, por iniciativa da própria cidadania. Esse fato por si só impede que o Lula e o Wagner aleguem que se trata da iniciativa golpista dos partidos de oposição. Nada disso; as figuras de oposição, que se atreveram a juntar-se aos manifestantes, foram simplesmente hostilizadas.
Noutras palavras: quem pede o impeachment de Dilma e o fim da corrupção petista é o cidadão comum, que se cansou da aventura populista, imposta ao país por Lula e que o levou à situação desastrosa em que se encontra hoje.
Nos cartazes e faixas que exibiam mostravam seu apoio à Operação Lava-Jato e, particularmente, ao juiz Sérgio Moro. Cabe observar também o nível de organização destas manifestações, cujos participantes se vestiam de verde e amarelo, exibindo, além de faixas, cartazes e máscaras dos principais personagens, carros e alegorias denunciando os abusos dos governos petistas. Se se leva em conta que esta foi, certamente, a maior e mais ampla manifestação popular contra um governo, deve-se concluir que Dilma, Lula e o petismo estão postos contra a parede, sem alternativa.
Ninguém dirá que esse impasse ocorre por acaso. Aos crimes praticados contra a Petrobras e ao uso irresponsável dos recursos públicos soma-se a incompetência administrativa, responsáveis por uma crise política e econômica sem igual em nossa história.
O povo nas ruas exige que Dilma deixe o governo. Ela, por sua vez, dois dias antes, convocou a imprensa para dizer que não renunciará, nem que a vaca tussa. Garantiu isso, embora, de fato, não governe, como todos sabem. Cabe então perguntar: pode manter-se à frente do governo de um país alguém que não o governa?
Um dia antes das manifestações referidas, houve a convenção do PMDB, o principal apoio político do governo no Congresso. A expectativa era grande, já que uma parte considerável do partido já se manifestara contra a manutenção da aliança com Dilma Rousseff.
A ruptura, porém, não ocorreu, como aliás já previam os analistas políticos, levando em conta, além do caráter dos peemedebistas, certos interesses em jogo que poderiam provocar uma divisão, muito inconveniente nesta hora. É que, no caso do impeachment se efetivar, o vice Michel Temer assumiria a Presidência.
Não obstante –como dizem os comentaristas– foi um aviso prévio a Dilma Rousseff, uma vez que o PMDB prometeu dentro de 30 dias dar sua palavra final, ou seja, desligar-se do governo. Aliás, o discurso de Michel Temer, encerrando a convenção, deixou isso subentendido, quando, sem confirmar a manutenção do apoio a Dilma, afirmou que o fundamental era manter a unidade (dos peemedebistas, claro) para recuperar o país e superar a crise, ou seja, aquilo que o governo petista não consegue fazer.
Enquanto isso, a situação de Lula se agravava, com o risco de ele ser preso a qualquer momento. Essa possibilidade assustou a todos eles, e foi quando se passou a falar na ida de Lula para um ministério, o que lhe garantiria foro privilegiado. Dilma negou que fosse isso, mas o pior estava por vir: a divulgação de uma conversa telefônica sua com Lula, quando ela o avisa de que está lhe enviando um termo de posse, para que ele usasse se necessário. Ou seja, para não ser preso. Uma bomba que pode levar à deposição de Dilma.

Folha de São Paulo, de 20 de março de 2016, caderno ilustrada, C8.

SÓ A POBREZA É IMORAL

Por João Pereira Coutinho

Desigualdade: não há tema mais quente em política. Que o diga Octávio Luiz Motta Ferraz, que em artigo para a "Ilustríssima" me interpela sobre o assunto. Tudo porque, semanas atrás, escrevi nesta coluna sobre "On Inequality" (sobre a desigualdade), o pequeno livro de Harry Frankfurt. Que recomendo.
Dizia eu, partindo de Frankfurt, que talvez o problema das nossas sociedades não esteja na desigualdade em si (ao fim e ao cabo, eu sou mais pobre que Cristiano Ronaldo e ninguém pretende corrigir essa desigualdade) mas, antes, na existência da pobreza.
Consequentemente, as políticas de distribuição de renda devem ponderar antes o que é "suficiente" para uma vida digna —e não alimentar grandes projetos utópicos que, ao procurarem a igualdade perfeita, apenas geram o tipo de igualdade que a limitação dos recursos impõe: a igualdade de todos na miséria.
Verdade, verdade: algumas das minhas conclusões partiam do texto de Frankfurt, embora não sejam subscritas pelo próprio. Mas se um texto filosófico não nos permite pensar com ele e para além dele, a filosofia política terá sempre uma utilidade bastante limitada.
E se isso é válido para Frankfurt, também será para o artigo de Motta Ferraz, com o qual estou basicamente de acordo. Só não estou "totalmente" de acordo por motivos que me parecem mais terminológicos que substanciais. (Ou estarei enganado?)
Questiona Motta Ferraz: não há razões de princípio para nos preocuparmos com a desigualdade econômica? E, mais ainda: não haverá circunstâncias que justifiquem certas medidas igualitárias?
Direi que sim a ambas as perguntas, embora relacionando o conceito de "desigualdade econômica" com a realidade objetiva da pobreza (ou, se preferirmos, da "insuficiência").
E, nesse quesito, aceito a posição de Motta Ferraz que é, creio, a posição liberal "moderna". Será que a liberdade de um homem pode ser apenas aferida pela ausência de coerção intencional de terceiros, como diziam os liberais clássicos?
O liberalismo "moderno" (ou "social") não se contentou com uma definição tão estreita de liberdade. E afirmou que só podem existir agentes livres e autônomos quando existem condições —materiais, educacionais etc.— para que os indivíduos exerçam essa liberdade e essa autonomia. Para citar um pensamento célebre de T. H. Green, é indiferente saber se existe censura quando os indivíduos não sabem ler.
Creio que Motta Ferraz afirma sensivelmente o mesmo quando defende a igualdade econômica como condição para o exercício de outras igualdades. Uma vez mais, concordarei com essa acepção se entendermos por "igualdade econômica" a realização possível de uma "teoria da suficiência" capaz de mitigar a pobreza.
Por outro lado, não me repugna a conclusão lógica dos liberais "modernos": o meu bem-estar dependerá do bem-estar dos meus semelhantes e da comunidade a que eu pertenço. Não apenas por motivos "morais"; mas até por motivos políticos bem prosaicos: quando os ricos não tratam dos pobres, existe sempre a possibilidade de os pobres tratarem dos ricos.
A história, aqui, é a melhor conselheira: não são as "desigualdades econômicas" que alimentam as revoluções. São, antes, as "desigualdades econômicas" intoleráveis —uma importante diferença.
Infelizmente, as intenções meritórias dos liberais "modernos" não resistiram ao próprio "progresso" do liberalismo "progressista" (peço desculpa pelo pleonasmo). Ou, como diria um filósofo célebre, o problema do liberalismo "moderno" foi não saber quando parar, transformando uma "doutrina da suficiência" em "engenharia social" igualitária.
Essa atitude, onipresente nas nossas sociedades, não é apenas um perigo para a liberdade individual; é também um obstáculo para a criação de riqueza, sem a qual não existe "doutrina da suficiência" para ninguém.
Pessoalmente, o ensaio de Frankfurt conquistou-me ao relembrar que o problema da desigualdade começa pelo básico: pela existência imoral da pobreza. O óbvio ululante?
Não creio. E, se dúvidas houvesse, bastaria lembrar os "profissionais do ressentimento", para quem toda a propriedade é um roubo — um roubo que legitima todos os roubos posteriores.

Folha de São Paulo, de 15 de março de 2016, caderno ilustrada, C6.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

DOMADOR DE ELEFANTES: Ex-operário, tradutor conclui trabalho com os 'cinco elefantes' de Dostoiévski

Por RODOLFO VIANA
  
Fiódor Dostoiévski (1821-1881) estava morto havia 80 anos quando Paulo Bezerra, paraibano de Pedra Lavrada, o encontrou pela primeira vez.
Na época, o nordestino radicado em São Paulo, então um militante de 21 anos do PCB (Partido Comunista Brasileiro), só tinha lido um livro na vida, "A Lã e a Neve", do português Ferreira de Castro. Por sugestão de uma amiga do Partidão, resolveu, em 1961, encarar "Crime e Castigo" na tradução das edições francesa e espanhola feita por Rosário Fusco e publicada pela José Olympio.

Fabio Teixeira/Folhapress
Paulo Bezerra em seu apartamento no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro
 
"Entendi muito pouco, mas fiquei fascinado com a história de Raskólnikov e o clima do romance", lembra.
Cinco anos depois, Bezerra imaginou, pela primeira vez, verter "Crime e Castigo" para o português direto do russo. Era um aluno de tradução da Universidade Estatal de Moscou, quando encontrou a mesma edição da José Olympio numa biblioteca. Aproveitou para cotejar com o original russo a versão de Rosário Fusco.
"Foi impressionante: era como se autores diferentes contassem a mesma história, cada um a seu modo", diz.
Trinta e cinco anos depois do vislumbre foi lançada pela editora 34 a tradução de Bezerra para o clássico de 1866 –a primeira versão direta do russo publicada no Brasil.
Ali começou a saga de verter diretamente da língua original os "cinco elefantes de Dostoiévski", apelido dado aos romances da maturidade do escritor no documentário "Die Frau mit den 5 Elefanten" (a mulher com os 5 elefantes), sobre a história de Svetlana Geier, que, como Bezerra, traduziu do original os cinco grandes romances, só que para o alemão.
Além de "Crime e Castigo", integram a lista "O Idiota" (1869), "Os Demônios" (1872), "O Adolescente" (1875) e "Os Irmãos Karamázov" (1881).
A saga de Bezerra chegou ao fim neste ano, uma década e meia depois, com o lançamento da tradução de "O Adolescente" para a editora 34.
"Meu pai era ferreiro; minha mãe, costureira –logo, não podiam custear meus estudos", lembra o tradutor de 75 anos que, aos 10, garimpava minério no Seridó da Paraíba. Também trabalhou em farmácias e no comércio, tentou –sem sucesso– se alistar na Marinha e ajudou um tio na construção de açudes.
Deixou o nordeste aos 18 em direção a Atibaia (SP). Após dois meses trabalhando numa granja, rumou para a capital e, depois, Guarulhos (SP), onde morou com o irmão, soldador e mecânico de uma fábrica e militante sindical.
No começo 1960, seguiu os passos do mais velho. Virou operário. Foi quando começou a se envolver com o movimento sindical e, por fim, se filiou ao PCB. Pela filiação, acabava demitido de todas as fábricas. Chegou a ser preso em 1962, durante uma greve. Foi liberado horas depois, mas não conseguia mais emprego.
No ano seguinte, aceitou o convite do PCB de fazer um curso de formação política em Moscou. Deixou o Brasil com um manual de russo, onde aprendeu o alfabeto cirílico e nada mais. "Eu só falava o português, minha formação regular era o curso primário e o curso de desenho mecânico."
OITO ANOS
Veio o golpe militar de 1964. Bezerra, comunista fichado pela polícia, não tinha como retornar. A estada, que deveria durar seis meses, se estendeu por oito anos. Nesse período, ele ingressou na universidade e trabalhou na Rádio Paz e Progresso, dedicada a questões políticas. Também conheceu Ênio Silveira, fundador da editora Civilização Brasileira.
"A ditadura assustava qualquer um, sobretudo quem trabalhava com jornalismo na União Soviética e estava bem informado do que acontecia por aqui", conta. Por orientação do PCB, retornou ao Brasil pelo Uruguai. "O clima era sinistro, sentia-se o perigo no ar." Como fora preso em São Paulo, decidiu se fixar no Rio. Era uma forma de precaução.
De volta ao país natal, Bezerra fez letras na Universidade Gama Filho e se tornou mestre e doutor pela PUC-Rio e livre-docente em literatura russa pela USP. Também reencontrou Silveira. Dessa primeira visita ao Brasil, em 1971, saiu com "Fundamentos Lógicos da Ciência", de Pavel Kopnin, para traduzir.
"Foi meu primeiro contrato de tradução", diz. Hoje, tem no currículo 33 obras traduzidas ao português, o que o torna um dos grandes tradutores de russo do Brasil, país até o século 20 acostumado a tradução de traduções do espanhol, do francês e do inglês.
Para Bezerra, "parafraseando Platão, o tradutor de texto indireto é um imitador de terceira categoria". Ele diz que o texto perde as peculiaridades das falas das personagens dostoievskianas, tornando-as claras e elegantes. Algo oposto a Dostoiévski, que "é rude, áspero, deselegante quando a forma o requer; logo, estilizá-lo e torná-lo palatável às chamadas regras do bem escrever significa trair uma peculiaridade essencial de seu estilo".
Aspereza que toma tempo: Bezerra leva, em média, dois anos e meio para traduzir e revisar cada obra.
TRADUTOR COMENTA TRADUÇÃO DOS CINCO ROMANCES
"Crime e Castigo"
Publicação 2001
Sinopse Dostoiévski narra a história do estudante miserável que assassina uma idosa e não consegue se livrar do peso do remorso.
Nota do tradutor "O principal é encontrar a linguagem específica de Raskólnikov, manter o padrão de aproximação e distanciamento ao longo do romance."
O Idiota
Publicação 2002
Sinopse O príncipe Míchkin é um indivíduo virtuoso que, inadaptado, passa por "idiota" numa sociedade corrompida.
Nota do tradutor "A grande dificuldade foi traduzir o prenúncio da epilepsia de Dostoiévski, em que os pensamentos eram desestruturados."
"O Adolescente"
Publicação 2015
Sinopse Romance de formação, com um jovem de 20 anos que busca ser aceito na sociedade russa no começo do capitalismo.
Nota do tradutor "Dos cinco livros, este foi o mais leve de traduzir, pois se trata de um romance praticamente sem a tragédia dos demais."
"Os Demônios"
Publicação 2003
Sinopse O autor cria uma ficção a partir de um episódio verídico: o assassinato de um estudante por um grupo niilista.
Nota do tradutor "Este romance tem uma dinâmica de crônica, diferente da das demais. O narrador está dentro da narrativa -não participa, mas vê."
"Os Irmãos Karamázov"
Publicação 2008
Sinopse O último livro de Dostoiévski trata da conturbada relação entre Fiódor Karamázov e seus três filhos.
Nota do tradutor "Foi um dos mais difíceis de traduzir. A mulher do capitão Sneguirióv tem problema de cabeça e sua linguagem é embaralhada, descontínua."

Em Folha de São Paulo de 30 de dezembro de 2015, caderno ilustrada, C1

A SEGUNDA GUERRA E SUAS IMAGENS

Por Ricardo Bonalume Neto


RESUMO Passados 70 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, o conflito continua sendo nicho de produtos culturais tanto na área histórica quanto na ficção. Este texto percorre representações do maior conflito da humanidade no cinema. Muitas buscam ser realistas, em que pese a tendência de romantização dos fatos.
Foto Eduardo Anizelli/Folhapress
A maioria dos soldados da maioria das guerras do século 20 nunca tinha participado de um combate antes. Para eles, a experiência mais parecida com a situação real eram os filmes de guerra. Soldados britânicos avançando à noite contra os argentinos nas ilhas Malvinas, em 1982, relatam em seus livros de memórias que o efeito das balas traçadoras (iluminadoras) lembrava cenas de filmes sobre a Segunda Guerra Mundial.
O maior e mais devastador conflito da história humana, encerrado há 70 anos, foi e continua sendo tema de inúmeros filmes, muitos deles entrelaçados com outras narrativas -romances, memórias e livros de história. Hollywood e uma parte dessa literatura tendem ainda hoje a romantizar a Segunda Guerra.
Em parte isso é explicável pela falta de consenso nacional nos Estados Unidos a respeito de conflitos posteriores, como as intervenções na Coreia, no Vietnã, no Líbano, na Somália, no Afeganistão ou no Iraque. Sendo assim, a Segunda Guerra passou a ser a "boa guerra", título usado ironicamente por Studs Terkel em uma coletânea de história oral sobre o confronto -"The Good War" (The New Press), livro que foi contemplado com o Pulitzer em 1985.
O cinema tentou, com variável grau de sucesso, reproduzir o som e a fúria da guerra. O realismo, obviamente, ganhou força com a explosão técnica dos efeitos especiais e da computação. Os resultados mais sofisticados chegam a ser chocantes, como vemos no início de "O Resgate do Soldado Ryan" ("Saving Private Ryan", 1998), dirigido por Steven Spielberg e estrelado por Tom Hanks. As cenas mostram o desembarque americano na praia Omaha, na Normandia, em 1944. Alguns veteranos da guerra sentiram-se mal e tiveram de ser retirados de salas de cinema ainda no começo do filme.
Spielberg e Hanks selaram uma produtiva parceria para retratar o conflito. Em 2001 eles produziram para o canal HBO a minissérie "Band of Brothers", baseada no livro de mesmo nome, lançado em 1992, pelo historiador Stephen Ambrose e publicado em português pela Bertrand Brasil, com o subtítulo "Companhia de Heróis". A série acompanha as missões de uma companhia de paraquedistas americanos desde o Dia D até o final da guerra na Europa.
"Band of Brothers" refletia bem uma linha de interpretação sobre o motivo que levaria pessoas a combaterem: não é pela pátria, tampouco por uma ideologia; é pelos colegas de trincheira. O grupo transforma-se numa espécie de família, um "bando de irmãos", como escreveu Shakespeare na peça "Henrique 5º".
A dupla também produziu outra minissérie importante em 2010, "The Pacific", dessa vez centrada na vida de três fuzileiros navais norte-americanos na guerra contra o Japão -Eugene Sledge, John Basilone e Robert Leckie.
A série é extremamente fiel aos livros de memórias de Sledge e Leckie e às biografias de Basilone.
O livro de Sledge ("With the Old Breed: at Peleliu and Okinawa", com a velha casta: em Peleliu e Okinawa, de 1981) é particularmente horripilante. Nem o cinema consegue reproduzir suas descrições de cadáveres apodrecendo na lama, cobertos de vermes, ou a sensação de pisar neles e sentir a emissão de seus gases e cheiros nauseabundos. Seria preciso que filmes tivessem odor e tato para serem fiéis à descrição; além, claro, de passarem o medo constante da morte ou de ferimentos.
ESFORÇO
Bem antes de terminar -em maio de 1945 na Europa, em setembro na Ásia-, a Segunda Guerra já era objeto da literatura e do cinema. Muito dessa produção, realizada tanto pelos Aliados como pelos países do Eixo, fazia parte do esforço de guerra, a tentativa de levantar o moral das tropas e das populações -aquilo que, num conflito posterior, se chamaria "ganhar corações e mentes".
Em meio ao joio, contudo, havia trigo de qualidade. Não eram apenas documentários e cinejornais efêmeros ou obras encomendadas. Excelentes livros de memórias começaram a ser escritos e diretores jovens e brilhantes iniciaram na guerra suas carreiras cinematográficas.
Foto Eduardo Anizelli/Folhapress
Com a paz e o final da censura -tanto a real como a autoimposta-, surgiu uma torrente de novos livros e filmes. Os historiadores, artífices de produção mais lenta e ponderada, tiveram de esperar a abertura de arquivos, a publicação memorialística dos protagonistas e seu interesse em dar ou não entrevistas e depoimentos.
Clio, a musa da história, tem, contudo, um valioso aliado: o tempo. Sem ela, as outras musas não teriam material para produzir suas próprias obras. Em que pesem os momentos propagandísticos, a história está presente nesses mais de 70 anos de literatura e cinema. Qualquer filme novo tem hoje uma sólida base historiográfica -como demonstram as próprias parcerias de Spielberg e Hanks.
Isso também tornou-se realidade no caso brasileiro. O país lutou contra o Eixo no Atlântico Sul e enviou a Força Expedicionária Brasileira (FEB) para a Itália em 1944.
Desde então, foram feitos alguns bons documentários sobre a participação do Brasil na guerra (e um péssimo, de 1990, "Rádio Auriverde", de Sylvio Back), além de minisséries toscas de televisão. Um dos melhores livros é "Senta a Pua!" (1980), do aviador Rui Moreira Lima, piloto do 1º Grupo de Caça na Itália -que em 1999 virou ótimo documentário com o mesmo nome, dirigido por Erik de Castro.
Foi só após o surgimento de uma historiografia sólida e crítica, com ênfase no cotidiano dos soldados, marinheiros e aviadores, que se tornou possível fazer no país um excelente filme de ficção, "A Estrada 47" (2013), de Vicente Ferraz, que estreou neste ano.
Já não existe hoje nenhum grande mistério histórico envolvendo o conflito que matou em torno de 60 milhões de pessoas -a não ser, claro, para os malucos de teorias conspiratórias que acreditam que Adolf Hitler criou seu Quarto Reich na Antártida, com escala na Patagônia argentina.
O último -único, na verdade-grande segredo sobre a condução da guerra ficou guardado até a década de 1970. Durante vários anos os Aliados tentaram interceptar as comunicações militares alemãs; o esforço foi feito por poloneses, franceses e britânicos, mas só estes últimos obtiveram sucesso, pois França e Polônia logo foram ocupadas pelos nazistas.
ULTRASSECRETO
O projeto Ultra conseguiu manter-se secreto de forma quase inacreditável, já que envolvia centenas de pessoas. Quando os historiadores se deram conta das informações vitais que ele passava aos líderes aliados na Europa, foi preciso reescrever trechos de um bom número de livros.
Não foi o caso, porém, da mais famosa série de memórias sobre a época, escrita pelo então primeiro-ministro britânico Winston Churchill. Ele era o principal usuário do Ultra, número um na lista (até virou um viciado nessas mensagens secretas), mas conseguiu escondê-lo por completo na sua brilhante -e extremamente parcial- obra memorialística do pós-Guerra.
Um filme que concorreu em oito indicações ao Oscar neste ano mostra que o tema continua atual: "O Jogo da Imitação" ("The Imitation Game"), com Benedict Cumberbatch no papel do gênio matemático e criptógrafo Alan Turing, que deu vida ao projeto Ultra.
Os britânicos, vivendo em ilhas relativamente invulneráveis a uma invasão nazista graças à sua Marinha, então a maior do mundo, conseguiram manter o moral alto ao resistirem aos bombardeios aéreos germânicos e, por isso, tiveram tempo de fazer livros, música e cinema para elevar ainda mais o ânimo nacional -diferentemente de franceses, belgas, holandeses, poloneses, noruegueses, dinamarqueses, gregos ou iugoslavos.
Para o grande império marítimo e colonial britânico, a força naval era fundamental também como um símbolo de identidade da nação. (O verdadeiro centro emocional de Londres é a praça Trafalgar, batizada em homenagem à batalha vencida em 1805 pelo almirante Horatio Nelson contra as naus de França e Espanha.)
Não por acaso "Nosso Barco, Nossa Alma" ("In Which We Serve", 1942), foi e continua sendo o clássico filme de guerra britânico realizado durante o conflito. Dirigido por Noël Coward e David Lean, teve total apoio do governo e dos militares.
O enredo é baseado na história real do destróier HMS Kelly, comandado pelo lorde Louis Mountbatten, e seu afundamento durante a batalha de Creta, em 1941. Críticos afirmam que Coward e Lean foram esteticamente influenciados por outro clássico da época, embora não voltado para a Segunda Guerra -"Cidadão Kane" ("Citizen Kane", 1941), de Orson Welles, O destróier do filme, batizado de HMS Torrin, simboliza a nação; é atacado e afundado, mas isso não implica o fim da resistência aos nazistas.
Destróieres eram os navios de guerra mais versáteis, equipados para lutar contra aviões, submarinos e embarcações de superfície. Um deles, o britânico HMS Bulldog, conseguiu capturar uma presa importantíssima do submarino alemão U-110: uma máquina Enigma em boas condições, fundamental para Turing e seus colegas desenvolverem o projeto Ultra. Mas um filme americano, "U-571" (2000) roubou o crédito para um submarino ianque! Não pegou nada bem do outro lado do Atlântico.
Não é demais lembrar que mesmo antes de os Estados Unidos entrarem no conflito, após o ataque japonês à base de Pearl Harbor, no Havaí, em 7 de dezembro de 1941, Hollywood já estava engajada com os Aliados -tanto que uma bela safra de filmes já apareceria em 1942, levando-se em conta que são necessários meses, mesmo anos, para uma boa produção.
COMBATE
Para a maior parte dos críticos e cinéfilos, um filme de guerra tem que envolver combate. Essa visão ortodoxa, no entanto, deixa de lado muita coisa boa que tem a guerra como pano de fundo. Existem subgêneros que podem ser muito bons, sem que um tiro precise ser disparado.
É o caso de filmes sobre prisioneiros de guerra, como o seminal "Stalag 17" ("Inferno Nº 17", de 1953), dirigido por Billy Wilder. Estrelado por William Holden, o longa conta a história de aviadores americanos, presos no campo de prisioneiros alemão número 17, que suspeitam que um deles seja um informante dos nazistas.
Um curioso derivado do filme foi uma das mais populares séries de TV americanas da década de 1960, a comédia "Hogan's Heroes" (no Brasil, "Guerra, Sombra e Água Fresca"). No episódio piloto (em preto e branco, assim como "Stalag 17"), o pessoal do coronel Robert Hogan tem que descobrir quem é o informante nazista no Campo 13. O restante da série, que passou nos EUA entre 1965 e 1971, foi filmada em cores.
Um exemplo recente de filme no qual o combate é pouco importante é "Caçadores de Obras-Primas" ("The Monuments Men", 2014), dirigido por George Clooney, sobre a busca, pelos Aliados, dos tesouros artísticos europeus saqueados pelos nazistas. Estima-se que cerca de 650.000 obras de arte tenham sido levadas de museus e de coleções particulares.
Outro bom exemplo de filme de guerra que não tem combate é um "cult" dos maiores de todos os tempos: "Casablanca", de 1942, protagonizado por Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. Bogart é um americano dono de uma casa noturna nessa cidade do Marrocos, então sob controle do governo francês de Vichy, colaboracionista com os alemães. Os EUA ainda não tinham entrado na guerra, e ele tem que optar entre o amor de uma mulher ou ajudá-la a fugir dali com seu marido, líder da Resistência tcheca.
Bogart em seguida estrelou outro longa da safra produzida ainda durante a guerra: "Sahara", de 1943 (que no Brasil teve o subtítulo "Em Busca da Sobrevivência"). Ele é um sargento no comando de um tanque médio M-3 vinculado ao 8º Exército Britânico no Norte da África. Depois de uma derrota, obra do brilhante general alemão Erwin Rommel, o tanque chamado "Lulubelle" vaga pelo deserto do Saara procurando água e coletando gente pelo caminho. Não é um filme repleto de ação; mas tem suspense, bons diálogos, e uma excepcional interpretação de Bogart. Mais um na categoria "clássico".
PELOTÃO
Tanques -ou "carros de combate", no jargão do Exército Brasileiro- e seus tripulantes não costumam ser os grandes astros em filmes de guerra. O clichê narrativo tradicional, que vale para inúmeros conflitos, é concentrar a ação em torno de uma pequena unidade de infantaria, um pelotão ou grupo de combate, com seus distintos personagens e grupos étnicos -no caso americano, o garoto malandro de Nova York ou Chicago, o caipira do sul, o boa-vida da Califórnia, o judeu, o ítalo-americano, o negro do gueto etc.
Mas o ator Telly Savalas comanda um tanque em "Os Guerreiros Pilantas" ("Kelly's Heroes"), comédia de 1970 que também inclui astros como Clint Eastwood e Donald Sutherland. O filme conta a história de um grupo de soldados americanos que penetra as linhas alemãs para roubar um banco.
Um exemplo recente, lançado nos EUA em 2014, traz Brad Pitt como comandante do tanque "Fury" (mesmo nome do filme; lançado neste ano no Brasil como "Corações de Ferro"). Mais uma vez, o acúmulo de historiografia e memória permitiu a produção de um longa razoavelmente realista.
A simbiose entre cinema e literatura teve dois perfeitos exemplos nos dois grandes filmes baseados na obra do jornalista irlandês Cornelius Ryan (1920-74), autor de livros de história chamados de "populares" por acadêmicos, pois são baseados principalmente em entrevistas com veteranos, e não em documentos. Pura inveja, pois Ryan foi à fonte antes de ela secar -os raríssimos veteranos da guerra hoje em toda a parte do mundo já ultrapassaram os 90 anos.
"O Dia Mais Longo" ("The Longest Day: 6 June 1944 D-Day") foi publicado em 1959 e trata da invasão aliada da Normandia. Ryan entrevistou mais de mil pessoas. Foi transposto para o cinema em 1962.
"Uma Ponte Longe Demais" ("A Bridge Too Far"), de 1974, virou filme em 1977. O tema é o fracassado ataque aliado de paraquedistas na Holanda, em 1944.
Ryan foi atrás de dois temas fundamentais para a visão anglo-americana da guerra. E os filmes baseados em seus livros tiveram elencos recheados de celebridades do cinema. "O Dia" reuniu John Wayne, Richard Burton, Sean Connery, Henry Fonda, Richard Todd, Robert Mitchum, Peter Lawford, Rod Steiger, Curt Jürgens, Robert Wagner e Paul Anka, entre outros.
"Uma Ponte" teve Gene Hackman, Laurence Olivier, Robert Redford, Dirk Bogarde, Ryan O'Neal, James Caan, Michael Caine, Sean Connery, Edward Fox, Elliott Gould, Anthony Hopkins, Maximilian Schell e Liv Ullmann.
FRENTE RUSSA
Por mais estrelas que os anglo-americanos tenham desfilado em seus filmes, é inegável que a frente de combate mais importante da guerra real foi a russa. A União Soviética teve que lutar -e vencer- contra cerca de dois terços do Exército alemão, dependendo do momento. A guerra ali foi a mais brutal da Europa.
Esse cenário sangrento está na historiografia e, para o fã de cinema, em alguns poucos mas expressivos filmes, como "A Cruz de Ferro" ("Cross of Iron", 1977), coprodução anglo-alemã, dirigida por Sam Peckinpah, protagonizada por James Coburn e Maximilian Schell. O tema do filme, que se passa em 1943, é a busca, por parte de um oficial aristocrático, dessa tradicional medalha alemã, em contraponto a um cínico e cético sargento que já a tem. Desnecessário dizer, o roteiro é baseado em livro de ficção inspirado em fatos reais.
Já o enredo do americano "Círculo de Fogo" ("Enemy at the Gates", 2001), dirigido por Jean-Jacques Annaud, passa-se durante a decisiva batalha de Stalingrado (agosto de 1942-fevereiro de 1943) e conta a história de um atirador de elite russo, Vasily Zaytsev (1915-91), que foi um dos mais espetaculares "snipers" de todos os tempos. Tendo o inglês Jude Law no papel principal, o filme mostra realisticamente o combate.
Stalingrado foi a derrota alemã mais impactante na frente leste, um ponto de inflexão na guerra. Não por acaso, também foi tema do cinema alemão, o realista e depressivo "Stalingrado - Batalha Final" ("Stalingrad", 1993), dirigido por Joseph Vilsmaier.
Mas talvez o mais famoso filme da Alemanha sobre a guerra seja "O Barco - Inferno no mar" ("Das Boot", 1981), dirigido por Wolfgang Petersen e baseado no romance com o mesmo nome, de Lothar-Günther Buchheim.
O tema é a guerra marítima promovida pelos submarinos alemães contra a navegação aliada. A ameaça submarina era considerada por Churchill como o maior obstáculo para a vitória. Os submarinistas tiveram os maiores índices de baixas das forças armadas da Alemanha de Hilter.
A guerra no mar também não é dos tópicos mais comuns na cinematografia da Segunda Guerra, mas alguns marcos históricos foram levados para a tela. "Afundem o Bismarck" ("Sink the Bismarck", 1960), por exemplo, trata da perseguição e destruição do grande couraçado alemão pela Marinha Real (britânica) em 1941.
Apesar de o filme não ter tantas cenas de ação, nele o suspense é mantido pela dificuldade de encontrar e combater o grande navio no meio do Atlântico, com ênfase na ação dos oficiais em terra que planejaram a campanha.
Já "A Batalha de Midway" ("Midway" 1976), trata da mais decisiva batalha naval da guerra no Pacífico entre Estados Unidos e Japão, com direito a um melodrama duvidoso -o romance entre um oficial americano e uma moça de origem nipônica. Como convém a um épico, o elenco é de medalhões, como Charlton Heston, Henry Fonda, James Coburn, Glenn Ford, Toshiro Mifune, Robert Mitchum, Cliff Robertson e Robert Wagner.
A participação de atores japoneses evidencia uma mudança de enfoque no cinema do pós-Guerra, com o Japão passando a aliado dos EUA. O mesmo já tinha acontecido em filme anterior e com tema bem mais polêmico, "Tora! Tora! Tora!" (1970), sobre o ataque a Pearl Harbor. Essa coprodução EUA-Japão opta por um enfoque revisionista baseado na historiografia mais recente da época. Deixava-se, por exemplo, de culpar os comandantes do Exército e da Marinha dos EUA pelo desastre.
CHARLIE
"Adoro o cheiro de napalm pela manhã", disse o tenente-coronel americano Bill Kilgore assistindo ao bombardeio de uma aldeia vietnamita a beira-mar. É uma das frases clássicas do magistral"Apocalypse Now" (1979, dirigido por Francis Ford Coppola), sobre a guerra do Vietnã. A aldeia é atacada ao som de "Cavalgada das Valquírias" que sai dos helicópteros. E Kilgore ordena a seus soldados que surfem. Outra frase memorável da cena virou título de uma música do conjunto de rock britânico "The Clash": "Charlie Don't Surf" ("vietcongue não surfa" -o codinome dos americanos para se referir aos combatentes sul-vietnamitas era "Victor Charlie").
Surreal? Não muito. Em 1983, uma coluna de blindados sul-africana avança em território angolano em direção a uma pequena cidade. Alguns dos veículos de "operações psicológicas" tocam em alto volume a música-tema do filme americano "Os Boinas Verdes" ("The Green Berets", 1968), com John Wayne, também passado no Vietnã.
"A cidade foi tomada em uma atmosfera surreal, minha primeira impressão é de que era algo tirado de 'Kelly's Heroes' ", escreveu o militar sul-africano, referindo-se ao já citado filme com Telly Savallas na direção de um tanque.
Bingo.

Em Folha de São Paulo de 25 de outubro de 2015, caderno ilustríssima, 4.

MARKETING EXISTENCIAL

Por LUIZ FELIPE PONDÉ

Vivemos na era do marketing. Hoje, vou apresentar para você um novo conceito, o conceito de "marketing existencial".
Marketing como paradigma se coloca ao lado daqueles que, desde a Grécia, como os sofistas, defendiam, contra Platão, que "ser é parecer ser". Portanto, toda nossa conversa hoje pressupõe que você entendeu que em momento algum estamos discutindo "o ser em si" das coisas, mas o modo como elas "parecem ser" no mundo de pessoas em busca de sentido.
Aqui, mesmo a busca da metafísica é uma busca por um bem que faça bem ao "eu" consumidor.
Em breve as ciências humanas trabalharão a maior parte do tempo para o marketing -afora as igrejinhas nos departamentos de ciências humanas por aí. Isso porque a relação do sujeito com o mundo está, a cada dia, mais "commoditizada". Até Jesus é uma commodity.
A principal commodity no marketing existencial é o "si mesmo pleno de si". Daí "existencial" no nome.
O conceito de "existência" nasce com o pensador dinamarquês Soren Kierkegaard, no século 19, pai da filosofia mais tarde conhecida como existencialismo.
A "assinatura" do existencialismo é "a existência precede a essência", ou seja, antes de termos algum significado que nos defina e oriente, somos um "existente jogado no mundo", como pedras, árvores e animais. A diferença é que nós temos consciência, e aí vamos em busca da essência.
Kierkegaard dizia que isso nos faz descobrir que somos "feitos" de angústia. Angústia pelo infinito de possibilidades de um ser que é "apenas" um existente.
Não é longe dessa ideia que Sartre, já no século 20, dirá que somos "condenados à liberdade": pouco importa o que façamos porque tudo tem zero de significado em si.
Vivemos num mundo de existentes em busca de sua "essência", pautados pela lógica do mercado de bens invisíveis.
Vou usar a palavra "existente" pra ficar no domínio do termo, mas você pode trocar por "pessoa" ou "indivíduo" que está valendo.
Como exemplo de bens invisíveis podemos dar liberdade, autonomia, saúde/bem-estar, autoestima, gozo, sentido, ousadia, experiência. Todos podem ser resumidos no conceito de comportamento.
A consequência é que o marketing (acima da política, essa "arte velha") já percebeu que fazemos qualquer negócio (mesmo os que mentem) pra aliviar o vazio desse "existente abandonado no mundo".
O marketing existencial é uma ferramenta, não um conteúdo. O conteúdo pode ser "profundo" como um retiro espiritual no Tibete ou superficial e brega como Orlando.
Pode ser ágil como uma bike num parque ou lento e "coletivo" como escolher o ônibus como opção "existencial". Pode ser barulhento como uma igreja pentecostal ou silencioso como um mosteiro no Monte Athos na Grécia. No foco, o "si mesmo" em busca de sentido.
Algo de muito interessante nesse universo é que a oposição não é entre "profundo" e "superficial", mas entre bens de sentido de luxo e de massa. No mundo do marketing existencial, um consumidor sofisticado é aquele que tende ao invisível, enquanto o consumidor banal é aquele que busca, babando, a visibilidade.
Por isso, em nosso mundo dos conectados, nada mais banal do que defender a conexão, nada mais elegante do que desprezá-la. Quem despreza as redes sociais passa um atestado de consistência existencial porque não "precisa de ninguém".
Comportamento de luxo só é visível pela ação, e não pela ostentação. Muito mais elegante para um existente é parecer dono do seu tempo e andar sem "roupa chique" no shopping do que sonhar em ser Prada quando a alma é da rua 25 de Março.
Felicidade é, evidentemente, um bem invisível, mas relacioná-la a uma mala cheia vinda de Miami caracteriza um existente pobre de espírito. Existente de luxo não compra nada.
Claro, porque ele tem quase tudo ou porque tem uma experiência de autossignificado tão potente que comprar soa coisa "para os fracos".
O marketing existencial de luxo é a "commoditização" definitiva do romantismo e seu desprezo pela modernidade burguesa e mercantilista. Os filósofos definitivos para esse consumidor de luxo são Spinoza e Nietzsche.

Em Folha de São Paulo, de 4 de janeiro de 2016, caderno Ilustrada, C6.
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A DESIGUALDADE NÃO É IMORAL

Por JOÃO PEREIRA COUTINHO

Fato: Cristiano Ronaldo tem mais dinheiro do que eu. Tem mais casas. Tem mais carros. Tem mais roupas. E, quando ele se despedir do futebol, é provável que Ronaldo tenha uma aposentadoria mais confortável do que a minha (digo "é provável" porque o futuro é sempre incerto por definição).
Pergunto: existe entre mim e Ronaldo um problema de "desigualdade econômica"? E, já agora, devemos combatê-la porque todas as desigualdades são imorais?
Calma, leitor, não responda já. Afinal de contas, eu tenho um casa. Tenho um carro. Tenho um salário. Os meus vizinhos não têm nada. Metade do meu país também não. Em nome de uma sociedade verdadeiramente igualitária, será que eu e os meus compatriotas devemos viver no mesmo patamar de pobreza?
Essas são algumas questões que Harry G. Frankfurt analisa em "On Inequality" (sobre a igualdade), um dos livros do ano que quase passou ao lado do meu radar (obrigado, "L.A. Review of Books").
Neste pequeno grande livro, Frankfurt vira o debate do avesso. Os políticos gostam de combater as "desigualdades" porque acreditam que a desigualdade é sempre imoral. Mas, como vimos nos dois primeiros exemplos, nem sempre a desigualdade é imoral (Ronaldo tem muito; eu tenho o suficiente) e nem sempre a igualdade é invejável (uma sociedade onde todos são igualmente pobres não é uma sociedade decente).
A principal conclusão de Frankfurt é que aquilo que devemos considerar "imoral" não é a desigualdade "per se". O que é relevante é a existência de pobreza. Ninguém se comove com a desproporção entre a fortuna de Ronaldo e o meu conforto tipicamente "burguês". Coisa diferente é saber que o meu vizinho não tem o que comer ou vestir.
Consequentemente, Frankfurt afirma —e bem— que a política deve abandonar as suas fantasias igualitaristas e concentrar-se numa "doutrina da suficiência", um conceito muito mais complexo de realizar do que simplesmente dividir o bolo em fatias rigorosamente iguais.
O objetivo não é todos terem o mesmo —uma "engenharia social" que leva ao desastre porque os recursos são limitados. O objetivo é todos terem o suficiente. E o que é "suficiente"?
A resposta a essa pergunta leva-nos à segunda crítica que Frankfurt dispara contra o igualitarismo. Porque o problema do igualitarismo é pensar a situação dos mais pobres sempre em relação aos mais ricos. Uma "doutrina da suficiência" prefere olhar para as pessoas a partir das suas circunstâncias e necessidades pessoais.
Para regressar à metáfora do bolo: eu posso dividi-lo em dez fatias iguais para alimentar as dez pessoas sentadas à mesa. Mas esse igualitarismo cego pode ser uma forma perversa de desigualdade se eu não souber primeiro quem é o faminto; quem é o guloso; e quem já almoçou antes de chegar para a sobremesa. Uma "doutrina da suficiência" não desperdiça recursos com o guloso e prefere reforçar a dose do faminto.
O breve ensaio de Frankfurt é um pequeno prodígio de inteligência e elegância literária - qualidades raríssimas na reflexão filosófica. Pena que alguns pontos do livro não estejam suficientemente desenvolvidos.
O autor condena a pobreza; mas condena igualmente os excessos de riqueza por ver neles uma ameaça política e social para a "saúde" das democracias.
Conheço o argumento - desde Aristóteles. Duas observações. A primeira é que Frankfurt não mostra como funciona essa ameaça. Admito que ela exista. Mas gostaria de ler um pouco mais sobre o bicho.
Pessoalmente, não creio que o problema esteja na existência de riqueza excessiva; mas antes na riqueza ilegalmente obtida —por exemplo, à custa dos mais pobres. A ideia de que "toda a propriedade é um roubo" não passa de uma proclamação ideológica, sem qualquer validade empírica. A minha casa não foi roubada a ninguém. E a sua?
Por outro lado, concordo com Frankfurt sobre a importância de discriminar na hora de distribuir o bolo. Mas essa discriminação não deve ser apenas material (dar mais bolo ao faminto, por exemplo). Deve ser também moral. Existe uma diferença entre o faminto que não consegue encontrar emprego; e o faminto que simplesmente não quer trabalhar.
A minha fatia extra de bolo só iria para o primeiro, não para o segundo.

Folha de São Paulo, de 29 de dezembro de 2015, caderno ilustrada, C6