Balança & Espada

"A justiça tem numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força bruta; a balança sem a espada é a impotência do direito" (JHERING)



Jurisprudência

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

SENTENÇA

Decisões meramente racionais não são decisões justas. Há de se decidir também com emoção, intuição e sensação (sentença), tudo isso para se ter a decisão mais justa e equilibrada. Bobagem quando, depois de um crime hediondo, afirmam que não é oportuno o momento para a mudança da lei penal. Então quando será, se crime hediondo ocorre todo dia? Se a mudança da lei vai resolver, prevenindo ou não o crime, pouco importa. O que interessa é satisfazer o senso de justiça da população, punindo, na medida, o agressor. Até porque a primeira finalidade da pena é a retribuição, que é verdadeira, prática e inequívoca. A ressocialização fica para segundo plano, pois decorre do idealismo, da crença, da religião, do mito de que o ser-humano é bom por natureza e a sociedade é que o corrompe. Isso não serve para mim.
 
 

domingo, 28 de julho de 2013

FASCISMO EM NOME DE DEUS

POR DRAUZIO VARELLA

Há manhãs em que fico revoltado ao ler os jornais.

Aconteceu segunda-feira passada quando vi a manchete de "O Globo": "Pressão religiosa", com o subtítulo: "À espera do papa, Dilma enfrenta lobby para vetar o projeto para vítimas de estupro que Igreja associa a aborto".

Esse projeto de lei, que tramita desde 1999, acaba de ser aprovado em plenário pela Câmara e pelo Senado e encaminhado à Presidência da República, que tem até 1º de agosto para sancioná-lo.

Se não houver veto, todos os hospitais públicos serão obrigados a atender em caráter emergencial e multidisciplinar as vítimas de violência sexual.

Na verdade, o direito à assistência em casos de estupro está previsto na Constituição. O SUS dispõe de protocolos aprovados pelo Ministério da Saúde especificamente para esse tipo de crime, que recomendam antibióticos para evitar doenças sexualmente transmissíveis, antivirais contra o HIV, cuidados ginecológicos e assistência psicológica e social.

O problema é que os hospitais públicos e muitos de meus colegas, médicos, simplesmente se omitem nesses casos, de forma que o atendimento acaba restrito às unidades especializadas, quase nunca acessíveis às mulheres pobres.

O Hospital Pérola Byington é uma das poucas unidades da Secretaria da Saúde de São Paulo encarregadas dessa função. Lá, desde a fundação do Ambulatório de Violência Sexual, em 1994, foram admitidas 27 mil crianças, adolescentes e mulheres adultas.

Em média, procuram o hospital diariamente 15 vítimas de estupro, número que provavelmente representa 10% do total de ocorrências, porque antes há que enfrentar as humilhações das delegacias para lavrar o boletim de ocorrência.

As que não desistem ainda precisam passar pelo Instituto Médico Legal, para só então chegar ao ambulatório do SUS, calvário que em quase todas as cidades exige percorrer dezenas de quilômetros, porque faltam serviços especializados mesmo em municípios grandes. No Pérola Byington, no Estado mais rico da federação, mais da metade das pacientes vem da Grande São Paulo e de municípios do interior.

Em entrevista à jornalista Juliana Conte, o médico Jefferson Drezzet, coordenador desse ambulatório, afirmou: "Mesmo estando claro que o atendimento imediato é medida legítima, na prática ele não acontece. Criar uma lei que garanta às mulheres um direito já adquirido é apenas reconhecer que, embora as normas do SUS já existam, o acesso a elas só será assegurado por meio de uma força maior. Precisar de lei que obrigue os serviços de saúde a cumprir suas funções é uma tristeza".

Agora, vamos ao ponto crucial: um dos artigos do projeto determina que a rede pública precisa garantir, além do tratamento de lesões físicas e o apoio psicológico, também a "profilaxia da gravidez". Segundo a deputada Iara Bernardi, autora do projeto de lei, essa expressão significa assegurar acesso a medicamentos como a pílula do dia seguinte. A palavra aborto sequer é mencionada.

Na semana passada, o secretário-geral da Presidência recebeu em audiência um grupo de padres e leigos de um movimento intitulado Pró-Vida, que se opõe ao projeto por considerá-lo favorável ao aborto.

Pró-Vida é o movimento que teve mais de 19 milhões de panfletos apreendidos pela Polícia Federal, na eleição de 2010, por associar à aprovação do aborto a então candidata Dilma Rousseff.

Na audiência, o documento entregue pelo vice-presidente do movimento foi enfático: "As consequências chegarão à militância pró-vida causando grande atrito e desgaste para Vossa Excelência, senhora presidente, que prometeu em sua campanha eleitoral nada fazer para instaurar o aborto em nosso país".

Quem são, e quantos são, esses arautos da moral e dos bons costumes? De onde lhes vem a autoridade para ameaçar em público a presidente da República?

Um Estado laico tem direito de submeter a sociedade inteira a uma minoria de fanáticos decididos a impor suas idiossincrasias e intolerâncias em nome de Deus? Em que documento está registrada a palavra do Criador que os nomeia detentores exclusivos da verdade? Quanto sofrimento humano será necessário para aplacar-lhes a insensibilidade social e a sanha punitiva?

* Publicado no jornal Folha de São Paulo, em 27 de julho em 2013

MAIS MÉDICOS

POR DRAUZIO VARELLA

A saúde no Brasil padece de dois grandes males: falta de dinheiro e gerenciamento incompetente.

Impossível levar a sério qualquer projeto que não enfrente ao mesmo tempo esses dois desafios. Investir apenas na organização é tão insuficiente quanto alocar mais recursos para um sistema perdulário, contaminado pela corrupção e por interesses políticos da pior espécie.

Há anos gravo programas de educação em saúde pelo interior do Brasil e na periferia das cidades maiores. Nessas andanças, aprendi que o Programa Saúde da Família (PSF) foi um grande avanço para o atendimento dos mais necessitados.

Por meio do PSF, iniciado em 1994, equipes formadas por médicos, enfermeiros, técnicos, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários acompanham até 4.000 pessoas distribuídas em áreas geográficas delimitadas. Seus objetivos são a "promoção, prevenção, recuperação, reabilitação e manutenção da saúde da comunidade."

Mais de 30 mil equipes, que contam com pelo menos 250 mil agentes comunitários, estão espalhadas pelo país. Aos olhos do visitante é notável a diferença das condições de saúde das populações que contam com elas. Estudo conjunto das Universidades de São Paulo e de Nova York mostrou que para cada 10% de aumento da população assistida, a mortalidade infantil cai 4,6%.

Pois bem, esse programa de sucesso precisa de médicos nem sempre fáceis de atrair, mesmo com salários mais altos. Precisa também de enfermeiras, dentistas e de técnicos qualificados, mas vamos nos deter na parte médica.

Médicos forçados a passar dois anos nessas equipes antes de receber a autorização definitiva para clinicar podem dar impulso considerável em busca da universalização do programa.

Se a Constituição permitir que o Estado obrigue alguém a trabalhar em local que não deseja, acho que os recém-formados poderão se beneficiar da experiência: aprenderão a exercer uma medicina que não é ensinada nas faculdades, conhecerão melhor as grandezas do país e a realidade perversa que condena à miséria, que governantes ufanistas insistem em proclamar extinta.

Essa medicina de pés descalços, no entanto, é incapaz de resolver problemas mais complexos. Estes dependem de profissionais motivados, com carreiras no serviço público bem estruturadas, unidades de saúde aparelhadas, hospitais equipados e administrados sem corrupção ou ingerências políticas.

Na Constituição de 1988, declaramos que saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado. Nenhum país com mais de 100 milhões de habitantes teve a ousadia de fixar meta tão pretensiosa. Infelizmente, os constituintes levantaram da mesa sem indagar quem pagaria a conta.

Passados 25 anos, constatamos que 56% do investimento em saúde vêm da iniciativa privada, para cobrir os gastos dos 48 milhões de brasileiros com mais recursos. Aos 150 milhões que dependem do governo cabe menos da metade do bolo.

Como consequência, esses 48 milhões de usuários dos planos de saúde têm à disposição quatro vezes mais médicos do que os 150 milhões atendidos pelo SUS.

Tal distorção acontece por uma razão óbvia: o médico procura estar no mercado que oferece salários mais altos e melhores condições de trabalho. Num sistema capitalista como o nosso, não são essas as expectativas de advogados, engenheiros, lixeiros, metalúrgicos e agricultores?

Apregoar como um grande salto na qualidade do atendimento à população a medida de obrigar recém-formados a prestar serviços em localidades desprovidas da infraestrutura mais elementar é simplificação demagógica.

Sem equipes treinadas, laboratórios de análises, imagens, centros cirúrgicos, acesso a medicamentos e a hospitais de referência para encaminhar os casos mais graves não se faz assistência médica digna desse nome.

Os especialistas calculam que no Brasil faltem 70 mil leitos hospitalares. Estamos vergonhosamente despreparados para atender à demanda das enfermidades responsáveis pela maioria dos óbitos: ataques cardíacos, câncer, diabetes, obesidade, derrames cerebrais, acidentes de trânsito, tabagismo, doenças pulmonares.

Atribuir a responsabilidade pelo descaso com o SUS à simples falta de médicos é jogar areia nos olhos do povo descontente.

* Publicado no jornal Folha de São Paulo, em 13 de julho de 2013

sábado, 1 de junho de 2013

GORE VIDAL (1925 -1913)


QUEM SÃO OS MUÇULMANOS?

POR JOÃO PEREIRA COUTINHO

Dois criminosos mataram barbaramente um soldado inglês em Londres. Em nome do Islã, disseram eles. Em nome dos irmãos muçulmanos que sofrem.

A sociedade inglesa ficou em choque. A extrema-direita prometeu vingança em várias cidades do país. Na imprensa, a pergunta habitual: que relação existe entre o Islã e o terrorismo?

Não vou fugir à pergunta. Mas, olhando e escutando os dois criminosos, é preciso saber primeiro que relações existem entre o distúrbio mental e atos desta natureza.

Um psiquiatra talvez seja mais útil do que um politólogo. Depois, e só depois, podemos discutir as relações entre uma religião e crimes praticados em seu nome. E a melhor forma de o fazer passa por escutar os próprios muçulmanos. O que pensam eles sobre os temas que normalmente são notícia?

Felizmente, ainda há quem trabalhe neste mundo: o Pew Research Center, durante quatro anos, realizou a maior enquete mundial a respeito. Entrevistou presencialmente 38 mil muçulmanos, em 39 países e em mais de 80 línguas e dialetos.

O estudo, recentemente publicado, intitula-se "The World's Muslims: Religion, Politics and Society". Qualquer interessado na matéria é obrigado a olhar para ele.

Eu olhei: durante dois dias, encontrei surpresas (muitas) e confirmações (algumas).

Sim, a relação entre a crença em Deus e a existência de uma vida moral, que no Ocidente foi praticamente enterrada com o iluminismo, permanece forte no Islã. Do sudeste asiático (94%) ao Oriente Médio e ao norte de África (91%), os muçulmanos entendem que uma vida moral está intimamente ligada a uma vida religiosa.

De igual forma, a esmagadora maioria acredita que a sharia (a lei islâmica que regula todos os aspectos do cotidiano) é a palavra revelada de Deus.

Só que as coisas começam a complicar-se quando olhamos para os detalhes. Deve haver uma única interpretação da sharia ou várias? No Oriente Médio, apenas metade defende interpretações uniformes.

No mesmo espírito, a maioria dos muçulmanos defende que a sharia deve ser a lei fundamental dos respectivos países.

Mas, surpreendentemente, metade defende que ela só deve ser aplicada aos próprios muçulmanos, não às restantes religiões.

E que aspectos da sharia são importantes para levar em consideração? A maioria é favorável à aplicação da lei islâmica em assuntos familiares e disputas patrimoniais.

São poucos os que defendem castigos corporais, embora existam exceções relevantes: 88% no Paquistão, 81% no Afeganistão e 70% no Egito não se importam com chicotadas ou amputação de membros.

E sobre o apedrejamento de mulheres adúlteras, metade diz que sim. Sobretudo nos países atrás referidos (os mesmos que também apoiam maciçamente a pena de morte para crimes de apostasia, ou seja, de renúncia da fé islâmica).

É inegável que a violência é intrínseca ao quadro legal de muitos países muçulmanos. Mas quando as perguntas lidam com o extremismo terrorista, a maioria rejeita-o enfaticamente. Só nos territórios palestinos (40% a favor) os números remam contra a maré.

Aliás, não deixa de ser inquietante olhar para os números dos territórios palestinos: sem surpresas, a maioria concorda que a sharia é a palavra revelada de Deus (75%), que deve ser a base legal de um futuro país (89%) e que deve estar sujeita a uma única interpretação (51%).

Mas os números ficam sobretudo pesados quando falamos de castigos corporais (76% a favor), apedrejamento de mulheres adúlteras (84%, idem) e morte por apostasia (66%, ibidem).

Aborto, sexo fora do casamento e homossexualidade são aberrações (como, aliás, para a esmagadora maioria dos muçulmanos de outras regiões). E 87% dos palestinos, seguindo a tendência mundial, defendem que as mulheres devem sempre obedecer aos seus maridos.

Conclusões? Não, não existe uma relação imediata entre o Islã e o terrorismo, exceto na cabeça dos terroristas (fato a que somos alheios).

Mas, por outro lado, este magistral estudo mostra como as vagas de modernidade que permitiram as liberdades do Ocidente --da reforma religiosa ao iluminismo secular-- ainda não chegaram ao Islã.

E, sem elas, será difícil resgatar essas sociedades do autoritarismo, da pobreza, da intolerância --e, em certos casos, dos extremistas que matam em nome da fé.

* Publicado no jornal Folha de São Paulo, em 28 de maio de 2013.

domingo, 26 de maio de 2013

MÁ-FÉ

MÁ-FÉ: pessoas tomam decisões erradas, sem cautela, sem reflexão e responsabilidade, ou simplesmente permanecem no imobilismo, na confortável situação de não fazer nada, e, ao sofrer as consequências de seus atos ou omissões, terminam por atribuir culpa à Justiça (humana, social ou divina), de quem esperam seja restabelecida prontamente a situação anterior, ou lhes sejam concedidos benefícios não merecidos — ainda que não seja possível.

domingo, 19 de maio de 2013

DESEMBARQUES NA NORMANDIA

POR JOÃO PEREIRA COUTINHO

Cotas raciais nas universidades: os argumentos são conhecidos.

Para o pensamento progressista, as cotas são uma forma de corrigir injustiças passadas, abrindo as portas das melhores universidades a candidatos negros, ou hispânicos, ou nativos-americanos etc.

Para temperamentos mais conservadores, as cotas são uma nova forma de racismo, ainda que invertido, ao reduzir a singular individualidade de cada um à mera pigmentação da pele.
E são, claro, um atentado às mais elementares noções de mérito.

Os argumentos são conhecidos, repito. Mas o que dizer quando duas bíblias do progressismo americano --o "New York Times" e a revista "Atlantic"-- publicam matérias altamente críticas sobre as políticas afirmativas no país?

Aconteceu. Nenhuma delas repete argumentos gastos porque a discussão deixou de ser ideológica. Passou a ser empírica: estarão as políticas afirmativas a produzir efeitos contrários aos pretendidos?

Ambas respondem que sim e dão nome ao descalabro: "mismatch". Ou, traduzindo o conceito, alunos impreparados que entram em universidades de elite através de preferências raciais têm desempenhos acadêmicos sofríveis.

E esse "mismatch" não se limita aos anos de formação. Ele acompanha os indivíduos para o resto das suas vidas profissionais.

O problema é particularmente pronunciado nas ciências, nas engenharias e nas matemáticas, o que não admira: o conhecimento nas "ciências exatas", relembra o "New York Times", é um conhecimento contínuo, onde é necessária uma forte preparação de base para haver progressos contínuos também.

Sem essa preparação, chegar a universidades de elite apenas pela cor da pele é uma espécie de desembarque pedagógico nas praias da Normandia.

A "Atlantic" quantifica essa carnificina: os alunos negros continuam a preferir mais cursos de ciências ou de engenharia do que os brancos; mas o "mismatch" faz com que a desistência entre negros seja o dobro da verificada entre os brancos.

O mesmo acontece depois da universidade: em direito, por exemplo, os alunos negros são reprovados no exame de acesso à profissão quatro vez mais do que os alunos brancos; o "mismatch" explica metade desses fracassos. O que fazer perante os números aterradores das políticas afirmativas?

Escondê-los tem sido uma opção, o que significa arruinar silenciosamente a vida de milhares de pessoas para que as consciências progressistas possam dormir com as suas vaidades intactas.

Outra opção, sugerida sem um pingo de vergonha pelo "New York Times", é "convidar" as instituições de elite a serem um pouco menos de elite. No fundo, "convidar" Harvard a não ser Harvard --uma forma de corrupção intelectual e um caminho para o atraso científico do país.

Mas existe uma terceira via: defender a velha ideia de que competências médias devem frequentar universidades médias.

A "Atlantic", aliás, revela uma curiosa experiência: em 1998, a prestigiada UCLA deixou de usar critérios raciais nas suas admissões. Resultado imediato: queda acentuada de alunos negros (menos 50%) e hispânicos (menos 25%). Escândalo e protestos.

Porém, o mais espantoso é que, nos anos seguintes à abolição dos critérios raciais e, apesar da queda, o número total de negros e hispânicos graduados pela UCLA era semelhante ao número de negros e hispânicos que terminaram os seus cursos antes da abolição. Por quê?

Razões várias. Cito duas. Primeiro, porque a UCLA acabou por atrair os melhores alunos negros e hispânicos que assim puderam frequentar uma universidade sem o "estigma" das políticas afirmativas.

E, mais importante ainda, porque aumentou o número de alunos negros e hispânicos que iniciaram a sua formação em universidades mais modestas -e só depois se transferiram para a UCLA.

Sim, ideologicamente, sou contra discriminações positivas (ou negativas) porque sou incapaz de reduzir qualquer ser humano a um "grupo" ou uma "raça". E não creio que seja função da universidade prosseguir agendas igualitárias. Apenas científicas.

Mas existem evidências empíricas que reforçam as ideológicas: a igualdade de oportunidades deve ser uma igualdade de base na formação de qualquer indivíduo.

Pretender corrigir no fim o que vem torto desde o início é destruir vidas adultas com ilusões politicamente corretas.

* Publicado no jornal Folha de São Paulo, em 13 de março de 2013.

sábado, 18 de maio de 2013

ABUSOS E INCOMPETÊNCIA

POR CONTARDO CALLIGARIS

Uma vez, fui contaminado pelo transtorno de um paciente. Aconteceu muitos anos atrás, em Paris. Um jovem era aterrorizado pela possibilidade de ser acusado de um crime com o qual ele não teria nada a ver. Incapaz de provar sua inocência, ele passaria a vida preso ou se escondendo.

Apesar de meus esforços, as fantasias de meu paciente permaneceram frequentes e assustadoras --apenas se tornaram mais ativas.

Ou seja, em vez de se ver mofando numa prisão ou num esconderijo, o jovem passou a imaginar que lutaria para provar sua inocência --como o Dr. Kimble, acusado do assassinato de sua mulher em "O Fugitivo", série televisiva dos anos 1960, que o paciente não conhecia, mas da qual eu me lembrava bem (o filme homônimo, que retomou a história, só chegou em 1993).

O medo de meu paciente encontrou um terreno fértil na minha desconfiança anarquista dos poderes constituídos. Ainda hoje, a ideia de ser a vítima indefesa da Justiça de um Estado não me faz rir.

Por causa disso, custei para assistir ao filme "A Caça", de Thomas Vinterberg. Sabia que era imperdível, mas tentava evitar o mal-estar que me produziria o espetáculo do sofrimento de Lucas, injustamente acusado de abusar sexualmente de uma criança.

Ora, ao longo do filme, ri repetidamente, e não foi "de nervoso". Os outros espectadores devem ter achado que havia um louco na sala. Mas era incontrolável: a incompetência da diretora da escolinha, do psicólogo que vai "ajudá-la" e dos pais eram verídicas, terrificantes e criminosas, mas estúpidas a ponto de ser cômicas.

O filme, aliás, deveria ser matéria de ensino nas faculdades de psicologia e nas escolas de polícia, com o pedido de que os alunos reparem os erros primários de educadores e outros adultos.

Em tese, deveríamos ter aprendido alguma coisa com tragédias jurídicas dos anos 1980 e 1990, em que crianças foram sugestionadas e manipuladas por pais e autoridades a ponto de formular coletivamente fantásticas acusações de abuso.

Houve as crianças "lambendo manteiga de amendoim no sexo da professora", na Wee Care Nursery School, em Nova Jersey, e a "Kombi-motel na escolinha do sexo", na Escola Base, em São Paulo.

Desde então, em alguns lugares do mundo, foi criada uma especialidade acadêmica em interrogatório de menores supostamente abusados. Aconselha-se que o interrogatório seja sempre por uma pessoa só (e filmado usando um espelho falso). Pede-se um teste específico que verifique o entendimento pela criança da relação entre verdade e mentira.

O entrevistador não deveria ter NENHUM conhecimento prévio da acusação. O uso de bonecos para mostrar como foi o abuso é considerado perigosamente lúdico. Enfim, a preferência é para entrevistas rigorosamente estruturadas, com perguntas preestabelecidas e, portanto, menos sugestivas.

Mesmo assim, ainda hoje, muitos textos básicos sobre interrogatório de crianças começam com a observação de que elas são relutantes a falar de abuso sexual. Só depois, e nem sempre, observa-se que, às vezes, as crianças se servem de acusações de abuso como meio de expressão: por exemplo, para assinalar aos adultos que elas podem ser desejáveis ou, justamente, para se vingar de um adulto que não foi seduzido por elas.

Não sei o que acontece, hoje, nas nossas delegacias especializadas, mas, de qualquer forma, nossa cultura é destinada a manipular a denúncia infantil de abuso.

Negamos a sexualidade infantil e idealizamos a inocência (e a "sinceridade") das crianças: só nos resta linchar os supostos abusadores antes que os detalhes dos casos nos revelem que a infância não é aquela terra dos anjos com a qual insistimos em sonhar.

No filme (e na vida real), é proposta aos pais uma lista de sintomas que indicariam que uma criança está sendo exposta a um trauma.

É fácil imaginar os efeitos da lista nos pais, assim como é fácil entender sua inutilidade: a sexualidade não é o efeito de um desenvolvimento interno e autógeno, ela é sempre efeito de traumas.

A menina de "A Caça" não foi abusada pelo homem que ela acusa, mas não lhe faltam traumas com os quais (graças aos quais?) "crescer". Trauma é a própria rejeição por Lucas, que lhe faz inventar que Lucas a deseja. Trauma é a pornografia no iPad dos amigos do irmão. Trauma é o questionamento pela corte de idiotas que a interrogam e sobre quem, manifestamente, ela deve se perguntar: mas o que será que eles realmente querem de mim?

* Publicado no jornal Folha de São Paulo, em 16 de maio de 2013

EVITANDO OS RISCOS

POR DANUZA LEÃO

É curioso: quando acontece uma tragédia, logo surge uma onda de tragédias iguais ou muito parecidas; agora é a vez desse crime bárbaro que é o estupro. Desde o horror que aconteceu com a turista americana, outros casos foram surgindo, e ultimamente são os adolescentes que têm aparecido no noticiário por abordar suas colegas de colégio de forma pouco respeitosa -para dizer o mínimo.

Em São Paulo, garotos se comportam de maneira condenável com meninas da mesma escola, sendo que são todos, eles e elas, muito jovens. As famílias das meninas se queixam à diretoria do colégio, que por sua vez procura os pais dos garotos, o assunto chega à imprensa e nada, ou quase nada, é resolvido.

Sobre o assunto, o caderno "Equilíbrio", da Folha, ouviu diversas opiniões. Rosely Sayão, colunista do jornal, se expressou dizendo que "a sexualidade desses jovens está muito exacerbada e eles não têm noção do respeito", e continuou: "a fase dos 13, 14 anos é a pior; é quando a efervescência hormonal se junta à hiperestimulação". Mais adiante, a psicóloga da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Renata Libório se dirige à família e à escola, pregando "por que não respeitar a menina, não importa a roupa que ela usa?" Estão certas as duas, e só me surpreendi ao saber que a sexualidade dos garotos está exacerbada tão cedo: 13, 14 anos? Pensava que nessa idade ainda fossem pouco mais que crianças.

Fiquei pensando: é claro que família e escola devem fazer de tudo para que esses adolescentes respeitem as meninas, mas, sinceramente, é difícil. Basta ligar a televisão, ler as revistas e ouvir contar que as jovens estão "ficando" com vários garotos nas festas, se gabam de ter beijado cinco, dez ou 15, nem sei. Outra leiloa sua virgindade, todas se vestem de maneira provocante -e vamos dar esse crédito a Xuxa: foi a partir de seus programas na televisão que a infância começou a ser sexualizada e que as crianças se vulgarizaram, passando a ter, como sonho de consumo, sapatos de saltinho, unhas pintadas, boca vermelha de batom, como verdadeiras chacretes em miniatura.

É claro que o ideal é que as meninas sejam respeitadas, mas, para isso, é preciso também que elas ajudem. As famílias devem orientar os filhos a serem seres civilizados, claro, e ao mesmo tempo ensinar às filhas a não usarem shortinhos, minissaias de um palmo, jeans que mal cobrem a virilha, tops mínimos, camisetas em cima da pele, e por aí vai. Se aos 13, 14 anos, a sexualidade dos meninos está exacerbada, não deve ser só a deles; a delas também. Desde que o mundo é mundo as mulheres gostam de provocar, de se exibir, de se sentir desejadas. Faz parte do jogo. Mas a sexualidade masculina é mais violenta e é aí que mora o perigo.

O mundo não é o que gostaríamos que ele fosse, e os riscos são permanentes, até para quem fica dentro de casa. Quem andar sozinha à noite numa rua deserta vai correr mais risco de ser assaltada; quem se vestir de maneira mais provocante vai correr mais risco de ser desrespeitada; quem abrir a porta de casa sem saber quem está batendo vai correr mais risco de ter sua casa invadida. Os meninos têm que fazer a parte deles, e as meninas, a delas.

E tem uma coisa que vejo nos jornais, mas que não consigo compreender. Estupro em ônibus, como assim? Como é possível haver estupro dentro de um ônibus?

Pois tem.

* Publica do no jornal Folha de São Paulo, em 12.05.2013.

O BANDIDO E O FRENTISTA

POR LUIZ FELIPE PONDÉ

A população está entregue às traças, enquanto nos palácios, gente inteligentinha de todo tipo (com o mesmo caráter da aristocracia pré-revolucionária de Versailles) discursa sobre "direitos humanos dos bandidos", toma vinho chileno, paga escola de esquerda da zona oeste de São Paulo que custa 3 mil reais mensais e vai para Nova York brincar de culta.

A inteligência ocidental está podre, mergulhada em seus delírios de reconstrução do mundo a partir de seus três gnomos Marx, Foucault e Bourdieu.

Nós, desta casta de ungidos, desprezamos o povo comum porque pensamos que o que eles pensam é coisa de gente ignorante.

Outro dia fui abordado por um frentista num posto perto da minha casa na zona oeste (perto daquela praça destruída aos domingos pelas bikes -"bicicletas" na língua de pobre). Ele disse: "O senhor não é aquele filósofo da televisão?". E continuou: "Não pense que porque somos proletários, não entendemos o que o senhor fala na televisão".

Quem adivinha do que ele queria falar? Este posto sempre foi 24 horas e agora não é mais. Por quê? Disse ele que estavam todos, do dono aos funcionários, cansados de serem assaltados toda noite. Disse ele: "O ladrão vem na sua moto, para, põe a arma na nossa cara, rouba tudo, ameaça nos matar e vai embora. Nada acontece".

E mais: "E fica todo mundo preocupado com o direito dos bandidos. Onde ficam os direitos de quem trabalha todo dia?".

Vou dizer uma blasfêmia, dirão alguns dos meus amigos da casta inteligentinha: se preocupar com direitos dos bandidos é apenas um modo chique de continuar se lixando para o "povo", assim como os coronéis nordestinos sempre se lixaram, a diferença agora é que a indiferença para com o destino das pessoas comuns vem regada a vinho chileno e leituras de Foucault.

A "elite branca letrada" é completamente indiferente para com o destino desse frentista.

Ele pede para que a polícia "acabe com os bandidos para ele poder trabalhar e a mulher e filhos dele não serem mortos". Ingênuo? Simplista? Talvez, mas nem por isso menos verdadeiro na sua demanda "por direitos".

A verdade é que estamos mergulhados num blá-blá-blá pseudocientífico das razões que levam alguém a ser bandido, seja qual for a idade, e enquanto isso esse frentista se ferra.

O que terá acontecido, que de repente a elite letrada e pública ficou tão "sensível ao sofrimento social" e tão indiferente ao sofrimento desta "pequena gente honesta"? Até escuto alguns de nós dizer: "São uns mesquinhos que só pensam nas suas vidinhas". Quem sabe alguns mais anacrônicos arriscariam: "Isso é resquício do pensamento pequeno burguês".

A verdade é que nós estamos pouco nos lixando para o que essa gente que anda de metrô, trem e quatro ônibus sofre. Todo mundo muito "alegrinho" com a PEC das empregadas domésticas, mas entre elas e os bandidos a vítima social são os bandidos.

A pergunta que não quer calar é: por que em países islâmicos, por exemplo, com alto índice de pobreza, não existe criminalidade endêmica? Será que tem a ver com medo da terrível punição corânica?

Dirão os inteligentinhos que a causa da criminalidade é social. Hoje em dia, "causa social" serve para tudo, como um dia foram os astros e noutro a vontade dos deuses.

Não nego que existam componentes sociais de fome e sofrimento na causa do comportamento criminoso, mas ninguém mais leva em conta que a maioria que vira bandido porque não quer trabalhar todo dia como esse frentista.

Ser bandido é, antes de tudo, um problema de caráter. E esse frentista, pobre também, sabe disso muito bem, só quem não sabe é minha casta de inteligentinhos.

O que dirão os inteligentinhos quando esse contingente de verdadeiras vítimas sociais do crime começarem a se organizar e matar os bandidos a sua volta? Pedirão a alguma ONG europeia para proteger os bandidos dessa gente "mesquinha" que só pensa em sua casinha, seus filhinhos e seu dinheirinho?

Acusarão essa gente humilhada e assaltada de não ter "sensibilidade social"? Dirão que soltar bandidos na rua é "justa violência
revolucionária"?

* Publicado no jornal Folha de São Paulo, caderno Ilustrada, em 13 de maio de 2013.

DITADURA DA MAIORIA

POR FERREIRA GULLAR

Não faz muito tempo, ouvi um deputado afirmar que o que define um governo democrático é a eleição. Se foi eleito, é democrático.

Todos sabemos que não é bem assim, pois, conforme a força que tenha sobre as instituições, pode um governo impor sua vontade e anular o direito dos adversários. A eleição é, sem dúvida, uma condição necessária para que se constitua um governo democrático, mas não é suficiente.

Se abordo esta questão aqui é porque vejo naquela simplificação uma ameaça à democracia, fenômeno crescente em vários países da América Latina e até mesmo no Brasil. Na verdade, essa é uma das manifestações antidemocráticas do neopopulismo, hoje hegemônico em alguns países latino-americanos.

Já defini esse novo populismo como o caminho que tomou certa esquerda radical, ao constatar a inviabilidade de seus propósitos ditos revolucionários. Não se trata mais de opor a classe operária à burguesia, mas de opor os pobres aos ricos.

O populismo age correta e legitimamente quando busca melhorar as condições de vida dos setores mais carentes da sociedade, o que lhe permite conquistar uma ampla base eleitoral. Mas se torna uma ameaça à democracia quando usa esse poder político para calar a voz dos opositores e, desse modo, eternizar-se no poder.

Exemplo disso foi o governo de Hugo Chávez na Venezuela. O domínio dos diferentes poderes do Estado permitiu ao chavismo manter-se no governo mesmo após a morte de seu líder, violando abertamente todas as normas constitucionais. Essa tese de que basta ter sido eleito para ser um governo democrático é conveniente ao populismo porque, contando com o apoio da maioria da população, usa-o como um aval para fazer o que quiser.

Está implícita nessa atitude uma espécie de sofisma, segundo o qual, se o povo é dono do poder, quem contraria sua vontade é que atenta contra a democracia. E quem sabe o que o povo quer é o caudilho.

Sucede que o governante eleito, como todos os demais cidadãos, está sujeito às leis, que estabelecem limites à ação de qualquer um, inclusive dos governantes. Não por acaso, todos eles, ao tomarem posse depois de eleitos, juram obedecer e seguir as normas constitucionais.

No Brasil agora mesmo, o populismo petista demonstra inconformismo com essas normas que o impedem de fazer o que queira. A condenação dos corruptos do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal levou-os a tentar desqualificar aquela corte de Justiça, acusando-a de ter realizado um julgamento político e não jurídico.

Como tais alegações não têm fundamento nem dificilmente mudariam a decisão tomada, resolveram alterar a Constituição para de algum modo anular a autonomia do STF.

Por iniciativa de um deputado petista, foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara uma emenda constitucional que resultaria em submeter decisões do Supremo Tribunal à aprovação do Congresso, numa flagrante violação da autonomia dos poderes da República, base do regime democrático.

Essa iniciativa provocou revolta nos mais diversos setores da opinião pública e até mesmo a Presidência da República, por meio do vice-presidente Michel Temer, procurou desautorizá-la. Não obstante, os presidentes da Câmara e do Senado manifestaram seu descontentamento a supostas intervenções do STF nas decisões do Congresso.

Com o mesmo propósito, tenta-se excluir do Ministério Público a atribuição de investigar e processar os responsáveis por crimes na área pública.

É que o populismo não tolera nada que lhe imponha limites e o critique. Por isso mesmo, um de seus inimigos naturais é a imprensa livre, de que a opinião divergente dispõe para se fazer ouvir.

Na Argentina, o populismo de Cristina Kirchner estatizou a única empresa que fornece papel aos jornais do país, o que significa uma ameaça a todo e qualquer jornal que se atreva a criticar-lhe as decisões além do que ela permita.

Quando consuma seus objetivos, o populismo estabelece o que ficou conhecido como a ditadura da maioria. Denominação, aliás, pouco apropriada, já que, nestes casos, o poder é, de fato, exercido por um líder carismático, a quem a maioria do povo segue cegamente.

* Publicado no jornal Folha de São Paulo, caderno Ilustrada, em 11 de maio de 2013