Balança & Espada

"A justiça tem numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força bruta; a balança sem a espada é a impotência do direito" (JHERING)



Jurisprudência

sábado, 23 de março de 2019

NUDEZ CASTIGADA

Por Cody Delistraty

Resumo: O austríaco Egon Schiele retratou adolescentes nuas em desenhos e pinturas que ainda instigam debate sobre a linha que separa a arte da pornografia --e a inspiração da exploração.

*

O passar do tempo tende a confirmar as supostas transgressões cometidas por figuras históricas ou a absolvê-las. Mas Egon Schiele, cujo centenário de morte foi celebrado em museus de todo o mundo em outubro do ano passado, apresenta uma lente particular pela qual se pode refletir sobre a linha que separa a arte da exploração.

Egon Schiele (1890-1918) começou a receber meninas adolescentes em seu estúdio em Neulengbach, Áustria, por volta de 1910. Ali, a cerca de 50 quilômetros de Viena, ele tinha um pequeno ateliê de pintura com um jardim nos fundos. Meninos e meninas, muitos de origem socioeconômica mais pobre, iam passar tempo com Schiele e sua modelo e amante, Walburga Neuzil, que ele chamava de Wally.

Schiele tinha apenas 20 anos na época. Wally, 17. A idade de consentimento sexual era de 14 anos na Áustria (como ainda é hoje), e o relacionamento deles não provocava muita indignação.

O que gerava escândalo era o fato de Schiele pintar crianças e adolescentes que vinham a seu estúdio e, como seria registrado em seu mandado de prisão dois anos mais tarde, “não guardar nus eróticos em um lugar suficientemente seguro” —ou seja, expor adolescentes e crianças aos seus desenhos e pinturas supostamente pornográficos.

"Nu Feminino Sentado" (1914), de Egon Schiele, usada na capa da Ilustríssima - Luisa Ricciarini/Leemage

Em abril de 1912, Schiele foi preso, acusado de “seduzir” Tatjana Georgette Anna von Mossig, 13 anos. Filha de um respeitado oficial naval, Mossig, que vivia em Neulengbach, pedira a Schiele e Neuzil que a levassem a Viena para viver com sua avó. Como muitos adolescentes, ela queria escapar de sua cidade provinciana. O artista e sua amante concordaram em levá-la, mas, quando chegaram a Viena, Mossig mudou de ideia e quis voltar para casa, no que foi atendida no dia seguinte.

Enquanto isso, porém, o pai de Mossig fora à polícia acusar Schiele de sequestro e estupro de menor de idade. O fato de Schiele ser artista —e um artista que pintava mulheres mais jovens— ajudou a reforçar as suspeitas do pai. Schiele também foi acusado de imoralidade pública, por expor adolescentes à sua arte.

Quando os policiais chegaram para prendê-lo, levaram embora 125 de seus desenhos, que classificaram como “degenerados”. O juiz queimou um deles no tribunal, como gesto simbólico. Depois de as duas primeiras acusações —sequestro e estupro de menor— serem arquivadas, Schiele passaria apenas 24 dias cadeia, mas a acusação de degeneração acabou por acompanhá-lo e ser associada também ao seu legado.

O tempo costuma ou absolver ou confirmar as supostas transgressões de figuras históricas. Mas Egon Schiele ainda hoje é um enigma particular, devido às interpretações opostas feitas de sua arte.

Será que ele explorou adolescentes, retratando-os de modo pornográfico? Ou teria questionado a natureza do desejo e da adolescência sem prejudicar ninguém?

Egon Schiele


'Autorretrato', obra de 1910, de Egon Schiele /Divulgação
Schiele trabalhou precisamente no momento em que a decadência e os excessos do final do século 19 davam lugar ao conservadorismo que antecedeu a Primeira Guerra Mundial. “Degeneração” foi o termo que os nazistas utilizariam para descrever grande parte da arte moderna, desde obras de Vincent van Gogh (1853-1890) até as de Paul Klee (1879-1940) e Edvard Munch (1863-1944).

“Raças degeneradas”, “sexualidades degeneradas” —qualquer tipo de aberração que fugisse aos valores e identidades tradicionais, brancos e heterossexuais já começara a ser condenada pela alta sociedade austríaca na época em que Schiele começou a trabalhar.

Em 1905, Sigmund Freud (1856-1939) tentava combater a disseminação dessa ideia na consciência pública, escrevendo em seus “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”: “Pode-se perguntar que utilidade e que novo conteúdo possui realmente o diagnóstico de ‘degeneração’”.

Para o pai da psicanálise, tachar assim as obras de arte era uma artimanha política, sem fundamentação legítima. Por essa ótica, a prisão de Schiele em 1912 talvez possa ser vista sobretudo como uma declaração política feita em uma cultura em transformação.

Embora a transição social de decadência para conservadorismo tenha arrastado Schiele consigo, a arte dele era excepcionalmente ousada, mesmo para padrões de hoje. Nudez é nudez, mas quando é mostrada com as linhas belas, as cores doentias e a evocação emocional obtidas pelo artista, fica claro que também é arte, não pornografia. O aparente interesse por garotas pré-púberes, em especial, confere ao seu trabalho uma qualidade mais sombria pela qual ele é conhecido hoje.

'Egon Schiele - Morte e Donzela'


Noah Saavedra no papel do artista e Larissa Breidbach como Moa Mandu em ‘Egon Schiele - Morte e Donzela’ /Divulgação

Um dos métodos favoritos de Schiele para pintar ou desenhar uma modelo envolvia fazê-la deitar-se sobre um colchão no chão. Ele subia numa escada ou banco elevado e a retratava a partir do alto. Jane Kallir, marchande e curadora que editou o recente catálogo raisonné do artista, argumenta que dessa maneira dava-se autonomia às modelos.

“Ao omitir de seus desenhos qualquer detalhe do ambiente em volta e frequentemente fazer uma leitura vertical de figuras deitadas, Schiele criava um senso profundo de deslocamento espacial”, Kallir escreveu. “A tensão resultante entre a modelo e a borda do plano da imagem questiona a capacidade da última de conter a primeira. Mesmo pelos padrões de hoje, esses desenhos conferem às mulheres um grau incomum de autonomia sexual.”

Kallir admite que Schiele não era “o que chamaríamos de feminista”, mas poucos homens de Viena no início do século 20 o seriam. Ela especula também que suas modelos podem ter sido empoderadaspelos retratos hipersexuais que o artista fazia delas. “Essa sexualidade é realmente uma espécie de superpoder”, ela se pergunta, “ou a atração feminina inevitavelmente implica em render-se ao patriarcado?”.

Capturando um momento em que tanto o artista quanto a modelo lidam com uma forte tensão sexual —aquelas meninas desnudas com a sexualidade começando a aflorar, e Schiele literalmente olhando diretamente para elas a partir do alto—, os quadros não apenas eram estilisticamente inovadores como encerravam uma revelação social.

Assim como Hugh Hefner fundou a revista Playboy depois de ler sobre o relatório de Alfred Kinsey, cujas pesquisas constataram que os americanos pensavam mais sobre sexo e faziam muito mais sexo do que a “sociedade tradicional” parecia afirmar, Schiele colocou em evidência perturbadora a decadência subjacente da sociedade vienense.

No entanto, alguns dos defensores mais ferrenhos de suas obras tendem a omitir que muitas das modelos que ele pintou não foram exatamente “mulheres”, mas meninas adolescentes. Em “Meninas Nuas Reclinando-se” (1911), por exemplo, Schiele desenhou duas meninas que provavelmente estão no início da adolescência —ou são ainda mais jovens.

Uma delas olha para fora, para o espectador, enquanto a outra olha para baixo, corada. Seus corpos são desenhados com nitidez; seus cabelos longos fluem para baixo. A impressão é pornográfica, como se o espectador estivesse sendo convidado a deleitar-se sexualmente com a timidez das meninas. Mas havia mais que isso acontecendo.

A concepção da adolescência e o modo como ela era retratada artisticamente passavam por uma transformação significativa na época. Na Idade Média, era comum que adultos fossem pintados em brincadeiras infantis, enquanto crianças frequentemente eram retratadas usando roupas de adultos.

Foi apenas no final dos anos 1800 que um conceito mais contemporâneo de infância emergiu e que crianças passaram a ser mostradas como crianças, como na tela “Almoço no Estúdio” (1868), de Édouard Manet (1832-1883). Mesmo nesse quadro, contudo, o jovem de 16 anos no primeiro plano usa gravata, malha e chapéu de palha que seriam próprios de um senhor de meia-idade.

E só em 1895, quando Munch terminou de pintar “Puberdade”, em que mostra uma menina nua cobrindo a genitália com suas mãos cruzadas, que uma adolescente seria retratada pela primeira vez do modo como os adolescentes tendem a ser mostrados hoje: vulnerável e passando pela “dor da transição”, como escreve o historiador John Neubauer em seu excelente “The Fin-de-Siècle Culture of Adolescence”.

Já os retratos de adolescência feitos por Schiele parecem originar-se diretamente da sensibilidade de Munch, também refletida no Die Brücke (a ponte), um grupo de expressionistas alemães que incluiu Ernst Ludwig Kirchner (1880-1938), Karl Schmidt-Rottluff (1884-1976), Otto Müller (1874-1930) e Emil Nolde (1867-1956).

A diferença crucial, contudo, entre os retratos da adolescência pintados por Schiele e os de Munch e da Brücke é que, como escreve Neubauer, “os artistas da Brücke usam o rosto para mostrar a sexualidade, sendo que Schiele a retrata em seu próprio centro” —ou seja, mostrava os órgãos sexuais das figuras que pintava. Schiele não era recatado.

Durante o período breve que se estendeu mais ou menos de 1895 a 1920, a adolescência foi vista como uma fase de transição, de maneira que se tornaria representativa do clima político austro-húngaro como um todo. Schiele levou um passo adiante as imagens provocantes de vulnerabilidade que estavam em voga na época, mas, como era o caso da Brücke, sua concepção fundamental da adolescência estava intrinsecamente ligada à política.

Em seu tempo, essa faixa etária começava a ser encarada como uma etapa fundamentalmente distinta da idade adulta. O erro típico do historiador amador é presumir que uma mentalidade contemporânea possa necessariamente ser extrapolada para o passado. No caso de Schiele, a compreensão dessa falácia é crucial para determinar o que era a exploração temática de uma nova fase da vida e o que era exploração pura e simples.

Os desenhos de Schiele que ganharam grande popularidade, realizados rapidamente em uma só sessão de trabalho, não eram meros receptáculos passivos do olhar masculino. Suas modelos nuas —muitas vezes retratadas olhando para o espectador com um misto de sensualidade e timidez— são, de fato, um ponto centralizador de tensão. Em vez de serem simplesmente pornográficas, as obras exigem que o espectador questione seus desejos tanto quanto o artista questionava os dele.

Schiele escreveu certa vez: “Será que os adultos se esqueceram de como eram corruptos, interessados em sexo e excitados por ele quando eram crianças? Esqueceram-se de como a paixão medonha os queimava e torturava quando eram crianças? Eu não esqueci, pois já sofri tremendamente por ela.”
Schiele morreu ainda jovem, aos 28 anos, da gripe espanhola. Suas últimas palavras teriam sido “a guerra terminou e eu preciso partir”.

Todos temos nossos demônios, nossas tensões, nossa destrutividade subjacente. Schiele usou os dele em sua arte para criticar o que via como uma sociedade excepcionalmente hipócrita, dominada por um novo movimento que encarava a sexualidade como sendo imoral, transviada, degenerada.

Visto sob essa ótica —e considerando como ele encarava a adolescência não apenas em termos políticos, mas como uma etapa fundamentalmente nova da vida a ser explorada—, o trabalho de Schiele, paradoxalmente, talvez seja mais moralmente justificável do que o contexto histórico em que ele viveu.

Entretanto, especialmente nos últimos anos, os museus que expõem suas obras geralmente têm se sentido na obrigação de incluir placas com informações sobre os aspectos controversos da vida pessoal do artista.

Um texto na parede do Museum of Fine Arts de Boston, por exemplo, que no ano passado promoveu uma exposição de trabalhos de Schiele e seu mentor, Gustav Klimt (1862-1918), dizia: “Schiele tem sido mencionado recentemente no contexto da conduta sexual imprópria de artistas presentes e passados. Isso se deve em parte a acusações específicas de sequestro e assédio sexual (que acabaram sendo retiradas por não terem fundamento)”.

Numa retrospectiva de Schiele promovida no museu Albertina, de Viena, que terminou em junho passado, o curador explicou que o espectador deve se sentir levemente perturbado pelas obras, já que isso faz parte do poder de subversão delas; a intenção é que elas nos obriguem a refletir acerca de nossos próprios desejos e relações com tabus sociais. “Enquanto Schiele retratou garotos sem qualquer tentativa de erotizá-los, ele sexualizava seus nus femininos”, diz um dos textos que acompanham as imagens.

A representação do corpo feminino sempre é erótica e parece criar uma relação com o observador, como se fosse selado um pacto secreto entre a jovem sedutora e o espectador seduzido. Rompendo os tabus da época, esses trabalhos mostram a sexualidade reprimida de crianças de maneira abertamente agressiva.
Outubro passado marcou o centenário da morte de Schiele. Fui ver duas mostras europeias sobre o artista.

A primeira foi na Fundação Louis Vuitton, em Paris. Organizada por Suzanne Pagé, diretora artística do museu, e Dieter Buchhart, curador, abrange mais de cem obras do austríaco. Pagé e Buchhart não pedem desculpas por Schiele. A exposição enfoca principalmente seu estilo, não as acusações feitas a ele como pessoa. Os trabalhos são apresentados em ordem cronológica, e os textos nas paredes nos incentivam a pensar sobre como seu uso de linhas mudou ao longo de sua trajetória.

Outra mostra de trabalhos do artista, em cartaz até 10 de março no museu Leopold, em Viena, vai mais além. Em lugar de desculpar-se pela controvérsia, implicitamente defende o tratamento dado às mulheres pelo artista. Um texto na parede diz: “Schiele mostrou que as mulheres são mais do que meras projeções de paixões, dando-lhes papéis diversos, permitindo que vasculhassem sua própria vida interior e apresentando a sexualidade com a maior franqueza possível. Seus retratos de mulheres se caracterizam pela busca da verdade”.

O texto afirma também que as modelos retratadas “têm consciência de seus próprios sentimentos”, destacando o senso de autonomia ao qual Kallir fez referência.

Os trabalhos de Schiele na mostra do Leopold estão justapostos aos de artistas mulheres contemporâneas, como Louise Bourgeois (1911-2010) e Sarah Lucas. Parece ser uma tentativa de contextualizar a obra do artista, talvez surpreendentemente, como uma espécie de feminismo precoce.

Verena Gamper, diretora do Centro de Documentação Egon Schiele do museu Leopold, escreve que a arte do austríaco apontou para “a maternidade como a imagem arquetípica do vínculo mais íntimo”.“A separação traumática”, ela escreve, “é estreitamente entremeada com uma aproximação da sexualidade e da morte, as forças principais que movem a vida”.

Outras defesas importantes de Schiele vêm sendo feitas. No final do ano passado, o conselho de turismo de Viena publicou uma série de anúncios no Facebook e em outdoors espalhados por Colônia, Hamburgo, Londres e Nova York em que os retratos nus do pintor são censurados por frases que condenam a censura.

(Vale lembrar que a nudez é proibida em anúncios no Facebook e em todas as cidades acima citadas, menos Nova York, mesmo a nudez em pinturas ou desenhos. Apenas um mural não censurado de um nu de Schiele conseguiu chegar ao mundo público: nas ruas Spring e Lafayette, em Nova York.)

Em um outdoor que mostra o quadro “Menina com Meias Cor de Laranja” (1914), de Schiele, a frase “sentimos muito, cem anos de idade, mas ainda hoje é ousado demais” cobre e oculta a genitália da menina. Em outros, a hashtag #DerKunstihreFreiheit (“liberdade para a arte”) está escrita sobre a obra, com uma faixa censurando os sexos.

No processo judicial Jacobellis versus Ohio, de 1964, que definiu a linha que separa arte de obscenidade (especificamente em relação ao filme “Os Amantes”, de Louis Malle), o juiz Potter Stewart declarou frase que ficaria famosa sobre a pornografia: “Eu a reconheço quando a vejo”.

Embora várias das telas de Schiele sejam sexualmente explícitas, com as pernas das figuras abertas e suas vulvas escancaradas, elas não são, estritamente falando, pornográficas. Isso não as absolve de sua natureza potencialmente exploradora, mas deixa a discussão mais complexa.

Como as exposições atuais fizeram bem em mencionar, enxergar as obras de Schiele como sendo unicamente sobre sexualidade é uma visão bastante estreita. Por exemplo, em “Eros” (1911), ele criou um autorretrato que o mostra encurvado, com a aparência doentia. Seu pênis vermelho e inchado ocupa boa parte da tela. É uma referência intencional a sua suposta degeneração. Ele parece estar dizendo que a verdadeira decrepitude está não em sua arte, mas no mundo.

Os trabalhos de Schiele refletiam seu tempo, e censurá-lo é ignorar tanto a história quanto os desejos tortuosos que todos temos. Ao lançar luz sobre esses anseios sombrios, Schiele ajudou a privá-los de seu poder.

Talvez nem toda obra de arte que fale de sujeitos moralmente ofensivos seja ela própria ofensiva. A moralidade de Humbert Humbert não é a moralidade do romance “Lolita”. Podemos retratar algo horrendo sem endossar o horror.

A arte é uma maneira de enfrentar a vida, mesmo ou especialmente em seus recantos mais funestos. Se não conseguirmos encarar a nós mesmos na arte, não conseguiremos nos encarar de maneira alguma —e essa é uma perspectiva muito mais perigosa que qualquer pintura ou desenho.

* Publicado no jornal Folha de São Paulo de 27 de janeiro de 2019, caderno ilustríssima.
Cody Delistraty é um escritor e crítico radicado em Paris.

Texto originalmente publicado na revista Paris Review; tradução de Clara Allain.

domingo, 10 de março de 2019

CIVILIZAÇÃO DÁ PASSOS ATRÁS

Parte do mundo, Brasil inclusive, regressa às trevas

Por Clóvis Rossi.

Gideon Rachman, um dos bons colunistas do Financial Times, está preocupado com o que supõe ser a perspectiva de o século 21 se transformar no século do "Estado Civilização", em contraponto ao "Estado Nação", que caracterizou o século 19.

O que seria o "Estado Civilização"? Seria aquele país que representa não apenas um território histórico ou um idioma particular ou um dado grupo étnico, mas uma civilização diferente. Uma ideia que estaria ganhando terreno na Turquia, na China, na Índia, na Rússia e mesmo nos EUA.

Já seria incômodo o avanço desse tipo de mentalidade, que, sempre segundo Rachman, teria implicações iliberais, na medida em que pressuporia que definições universais sobre direitos humanos e padrões democráticos perderiam valor, posto que "cada civilização necessita instituições políticas que reflitam sua cultura única".

Compartilho essa preocupação, mas ouso supor que o problema seja bem mais sério e mais imediato: o que está em curso nos países mencionados —e aos quais ouso acrescentar o Brasil de Jair Bolsonaro—não é a construção de uma nova civilização, mas um retrocesso importante no processo civilizatório.



Não vou discutir os casos de Turquia, China, Índia e Rússia, primeiro por falta de espaço e, segundo, por estarem distantes da realidade brasileira, ao contrário dos Estados Unidos.

O que Trump está fazendo por lá é retroceder aos piores momentos do patriotismo, já definido, faz uns 300 anos, como "o último refúgio dos canalhas" (para citar o escritor inglês Samuel Johnson, 1709-1784).

Um dos mantras preferidos do presidente americano ("America First") é irmão siamês do "Deutschland, Deutschland über alles" (Alemanha acima de tudo), primeira estrofe do hino nacional alemão. Felizmente, a democracia pós-nazismo resolveu sabiamente pular essa parte, para que, nas cerimônias oficiais, seja cantada apenas a terceira estrofe.

Preciso lembrar que "Deutschland über alles" embalou mais de uma guerra em que a Alemanha se envolveu, com as trágicas consequências conhecidas, inclusive para a própria Alemanha?

Voltar a esse grito, na América como no Brasil, não é pretender erguer uma nova civilização, mas um retrocesso claro no processo civilizatório que avançou, aos trancos, mas avançou nos últimos muitos anos.

No caso específico do Brasil, já escrevi, ainda durante a campanha eleitoral, que um candidato que elogia a tortura e idolatra o único torturador condenado pela Justiça, o coronel Brilhante Ustra, marca um retrocesso civilizatório, qualquer que fosse o resultado do pleito.

Não há civilização que possa ser construída com a louvação desse tremendo desrespeito à dignidade humana que é a prática da tortura.

O que veio depois só fez confirmar aquela avaliação. É civilizado chamar de "estadista" um ditador corrupto, torturador e suspeito de pedofilia, como o paraguaio Alfredo Stroessner? Bolsonaro o fez.

É civilizado separar crianças dos pais nas fronteiras dos Estados Unidos? Trump o fez, embora tenha recuado depois, sob pressão do público.

É civilizado pendurar nas redes sociais um vídeo pornográfico? Não, não estamos falando de novo conceito de civilização, mas de regresso às trevas.

* Publicado em jornal Folha de São Paulo de 7 de março de 2019.

quarta-feira, 6 de março de 2019

O PREÇO DA DEMOCRACIA

Por João Pereira Coutinho.

Passei uns dias em Londres e convivi com estudantes russos. Falamos de jovens com 22 ou 23 anos, primorosamente educados, e que estudam ciência política na pós-graduação.


Mas o mais impressionante foi a ausência de política nos seus discursos, se entendermos por política o confronto de ideias sobre diferentes concepções de vida e de organização social.


Teoricamente, eles sabem que assim é. Mas quando o assunto se aproximava da política doméstica, a atitude era uniforme: nenhum deles estava particularmente preocupado com Vladimir Putin e o seu regime.


Se eu fosse paranoico, diria que o temor deles era que eu fosse um agente russo disfarçado, pronto para denunciar os críticos do Kremlin. Mas o desinteresse era genuíno. Motivos?


Os mais básicos --em vários sentidos da palavra. Nunca a classe média russa viveu tão bem. Haverá vantagens em ter uma democracia liberal com eleições livres, separação de poderes, direitos e garantias --e não ter dinheiro para pagar as contas do mês?


Boa pergunta. Uma pergunta que o Fundo Monetário Internacional reforçou. Leio no Wall Street Journal que a instituição fez as suas projeções econômicas para os próximos cinco anos.



Uma ideia perturbante: o total do PIB dos países considerados "não livres" pela Freedom House será superior, pela primeira vez na história, ao valor da riqueza gerada pelas democracias ocidentais.


Para darmos nomes aos bois: as economias combinadas dos Estados Unidos, da Alemanha, da França e do Japão vão perder para o time da China, da Rússia, da Turquia e da Arábia Saudita.


No fundo, o que o FMI prevê é que a "narrativa democrática" está em risco. Em que consiste essa narrativa?


Na ideia otimista de que existe uma relação profunda entre democracia e prosperidade: quanto mais democrático um país, mais próspero ele será.


Pois bem: a emergência do "autoritarismo capitalista" desautoriza essa ideia. É possível combinar um governo de ferro com riqueza geral. Ou não é?


A resposta mais sincera é que não sabemos. Embora eu duvide da validade da tese a longo prazo. O sucesso do "autoritarismo capitalista" é fenômeno recente. Ainda há um futuro inteiro para provar.


Seja como for, o desafio é real. E a inquietação também. Se a única coisa que garante a superioridade da democracia liberal sobre o "autoritarismo capitalista" são os bons resultados econômicos, o que acontece quando essa vantagem se evapora?


A resposta, óbvia, é que a democracia liberal não pode se definir apenas pela economia. Para os meus amigos russos, questões de dinheiro fechavam qualquer debate.


Acontece que não fecham --e Alexis de Tocqueville sabia disso. Quando viajou pela América no século 19 e escreveu o monumental "Da Democracia na América", o francês já tinha alertado: o materialismo em excesso destrói o horizonte espiritual do homem.


Sem cultivar certos valores imateriais --"les moeurs", como os chama Tocqueville-- o caminho está aberto para a servidão.


Sim, até podemos ter todos os confortos nessa servidão. Melhor ainda: o governo déspota tem todo o interesse em que nos percamos em prazeres efêmeros, como se fôssemos crianças com novos brinquedos, sempre afastadas da mesa dos adultos. Mas isso não altera o nosso estado servil.


Por outras palavras: no seu marketing existencial, as democracias liberais deram muita atenção a questões econômicas. Mas as questões fundamentais são outras.


Qual a vantagem em participar nos destinos da minha sociedade?


Por que motivo a autonomia é preferível à submissão?


Que importância eu dou à liberdade em todas as suas formas --de expressão, de imprensa, de associação etc.?


E por que motivo é tão importante ter a possibilidade de remover os maus políticos sem derramamento de sangue, para usar a conhecida formulação de Karl Popper?


No fundo, essas são as questões perenes que sustentam o ideal democrático. Os meus amigos russos eram incapazes de responder a elas. Pior: essas perguntas nem sequer lhes ocorriam. Como se fossem relíquias de um tempo arcaico.


Se o mesmo acontecer entre os democratas ocidentais --e uso a palavra democratas por gentileza-- não há nenhum motivo para que a democracia liberal sobreviva.


Será preciso lembrar que, em crentes, acabou a crença?
*Publicado no jornal Folha de São Paulo em 5 de março de 2019, ilustrada, C4.