Balança & Espada

"A justiça tem numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força bruta; a balança sem a espada é a impotência do direito" (JHERING)



Jurisprudência

terça-feira, 16 de abril de 2019

Osesp apresenta a maior obra de Bach em extensão e grandiosidade


Por Sidney Molina.

“O mito da morte de deus é trágico”, escreveu Eudoro de Sousa (1911-87). Encenadas desde a antiguidade, as versões do mito da humanização do divino e de seu sacrifício redentor podem assumir formas que abrandam os limites entre arte, religião e filosofia.

Concebida por Johann Sebastian Bach (1685-1750) para o culto luterano e estreada na Igreja de São Tomás, de Leipzig (Alemanha), há exatos 292 anos (em 11 de abril de 1727, então uma Sexta-Feira Santa), “A Paixão Segundo São Mateus” será apresentada a partir desta quinta (11) pela Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado) com regência de Nathalie Stutzmann.

A francesa Nathalie Stutzmann - Isabela Guasco/Divulgação


A obra supera em extensão e grandiosidade qualquer outra escrita pelo compositor. São duas orquestras, dois coros, coro infantil e seis cantores solistas, num espetáculo-ritual de quase três horas de duração (haverá intervalo).

Após a morte de Bach, a “grande paixão” somente seria ouvida um século mais tarde, em 1829, quando Felix Mendelssohn (1809-47), aos 20 anos de idade, regeu uma performance em Berlim. Desde então não parou de ser estudada pelos especialistas e nunca saiu do radar para as celebrações musicais da Semana Santa.

Tecnicamente, a obra é um tipo de oratório, que por sua vez se assemelha, em muitos aspectos, a uma ópera: há teatralidade, os cantores solistas encarnam os protagonistas do drama sacrificial, mas ao contrário da ópera, não há cenários, figurinos nem atuação cênica dos personagens.

Entre eles destacam-se o próprio evangelista Mateus (o narrador, a cargo do tenor), cujos recitativos (espécie de canto falado) são extraídos diretamente dos capítulos 26 e 27 do texto bíblico. Há também Jesus, a voz grave que ressoa sustentada por um efeito especial das cordas no acompanhamento. Pedro, Pilatos e outros personagens surgem ainda com falas próprias.

Outra distinção importante é entre os coros, trechos que frequentemente evocam a reação da turba diante dos acontecimentos, e os corais, breves hinos luteranos harmonizados por Bach. Um deles, “O Haupt voll Blut und Wunden” (Oh, cabeça cheia de sangue e feridas) surge sutilmente alterado em diferentes momentos, o que o faz assumir uma função de “condutor da emoção” do ouvinte.

Para além de personagens, orquestras, coros e corais, há as árias, que são trechos musicalmente mais desenvolvidos —canções solistas sobre poemas (escritos por Christian Friedrich Henrici, o libretista de Bach), e que contrastam com o texto das escrituras.

A ária “Erbarme dich” (Tem piedade de mim), com solo de contralto em diálogo com violino, foi utilizada como tema de abertura e final de “O Sacrifício” (1986), premiado filme do russo Andrei Tarkovski (1932-86).

Apenas a morte consuma a humanização do divino. Na cruz, perto do final, Jesus usa o idioma hebraico para se dirigir a um deus agora distante, enquanto Bach retira o acompanhamento instrumental que antes distinguia a sua fala. Não há ressurreição: à margem da tragédia, resta tão só um lapso de vida a viver.

*Publicado em jornal Folha de São Paulo de 15 de abril de 2019, caderno ilustrada, C6.