Balança & Espada

"A justiça tem numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força bruta; a balança sem a espada é a impotência do direito" (JHERING)



Jurisprudência

terça-feira, 31 de outubro de 2017

ANNA KARIÊNINA - IV

O aspecto do irmão e a proximidade da morte fizeram ressurgir, na alma de Liévin, aquele sentimento de horror diante do indecifrável, e também da proximidade e da inevitabilidade da morte, que o dominara naquela noite de outono, em que o irmão viera à sua casa. Tal sentimento era agora ainda mais forte do que antes; sentia-se ainda menos capaz do que antes de entender o sentido da morte e lhe parecia ainda mais horrorosa a sua inevitabilidade; mas agora, graças à proximidade da esposa, esse sentimento não o levava ao desespero: apesar da morte, ele sentia a necessidade de viver e de amar. Sentia que o amor o salvara do desespero e que esse amor, sob a ameaça do desespero, se tornava ainda mais forte e mais puro.
O mistério da morte mal tivera tempo de se desvendar diante de seus olhos, permanecendo indecifrável, quando irrompeu um outro, igualmente indecifrável, que o  impelia a amar e a viver.
O médico confirmou sus suspeitas a respeito de Kitty. Seu mal-estar era a gravidez.

(Anna Kariênina, Liev TOSTÓI, Trad. Rubens Figueiredo, São Paulo: Cosacnaify, 2013, pp. 495 e 496).


quinta-feira, 26 de outubro de 2017

ANNA KARIÊNINA - III

— O senhor agiu mal, muito mal.
— E acaso ignoro que agi mal? Mas quem foi a causa de eu ter agido assim?
— Por que o senhor me diz isso? — perguntou Anna, lançando-lhe um olhar severo.
— A senhora sabe o por quê — respondeu, com audácia e alegria, encarando seu olhar, sem desviar os olhos.
Não ele, mas ela sim perturbou-se.
— Isso apenas vem mostrar que o senhor não tem coração — disse Anna. Mas seu olhar dizia que ela sabia que Vrónski tinha coração e por isso o temia.
— Isso a que a senhora se referiu foi um engano, e não amor.
— O senhor lembre que eu o proibi de pronunciar esta palavra, esta palavra detestável — disse Anna, sobressaltada; mas no mesmo instante se deu conta de que com aquela palavra, proibi, mostrava que reconhecia ter certos direitos sobre ele e, por isso mesmo, o incentivava a falar de amor.— Há muito eu queria dizer isto ao senhor — prosseguiu, fitando decidida os olhos de Vrónski e toda ela ardendo, no rosto corado que queimava — e hoje vim aqui de propósito, sabendo que o encontraria. Vim dizer ao senhor que esto deve terminar. Nunca me ruborizei diante de ninguém, mas o senhor me obriga a me sentir culpada.
Ele a fitou e ficou impressionado com a nova beleza espiritual do seu rosto.
— O que a senhora quer de mim? — perguntou, de modo simples e sério.
— Quero que vá a Moscou e peça desculpas a Kitty — respondeu Anna, e uma pequenina luz começou a cintilar em seus olhos.
— A senhora não quer isso — disse ele.
Vrónski notava que Anna dizia aquilo que se obrigava a dizer e não o que desejava.
— Se o senhor me ama, como diz — sussurrou —, faça isso, para que eu fique em paz.
O rosto de Vrónski iluminou-se.
— Acaso ignora que a senhora é toda a minha vida! Mas, paz eu não conheço e não posso lhe dar. Todo o meu ser, o amor... sim, posso. Não consigo pensar na senhora e em mim separados. A senhora e eu somos um só, para mim. E não vejo, no futuro, nenhuma possibilidade de paz, nem para mim, nem para a senhora. Vejo a possibilidade de desespero, de infelicidade... ou vejo a possibilidade de felicidade, e que felicidade!... Será mesmo impossível? — acrescentou, só com os lábios; mas Anna ouviu.
Com toda a força do pensamento, Anna se obrigava a dizer o que devia ser dito; mas, em vez disso, concentrou no olhar dele o seu próprio olhar, repleto de amor, e nada respondeu.
"Aí está ele!", pensou Vrónski, com um arroubo. "Quando eu já começava a perder a esperança e quando parecia que isso não ia mais ter fim, aí está ele! Ela me ama. E o admite."
— Então, faça isto por mim, nunca mais me diga essas palavras e sejamos bons amigos — pediu a voz de Anna, mas seus olhos diziam algo bem diferente.
— Não seremos amigos, a senhora sabe disso. Seremos os mais felizes ou os mais infelizes dos seres humanos. Isto está em suas mãos.
Anna quis dizer algo, mas ele a interrompeu.
— Só lhe peço uma coisa, o direito de esperar, de sofrer, como agora; mas se isso também for impossível, mande que eu desapareça, e eu desaparecerei. A senhora não mais mais me verá, se a minha presença lhe for penosa.
— Não tenho a intenção de banir o senhor.
—Apenas não mude nada. Deixe tudo como está — disse ele, com voz trêmula.

(Anna Kariênina, Liev TOSTÓI, Trad. Rubens Figueiredo, São Paulo: Cosacnaify, 2013, pp. 147 e 148).



segunda-feira, 23 de outubro de 2017

ANNA KARIÊNINA - I

(...) Toda vez que Vrónski falava com Anna, inflamava-se nos olhos dela um brilho de contentamento, e um sorriso de felicidade arqueava seus lábios rosados. Anna parecia fazer um esforço contra si mesma para não demonstrar esses sintomas de contentamento, mas eles sobressaíam, por si mesmos, em seu rosto. "Mas e quanto a ele?" Kitty observou Vrónski e horrorizou-se. Aquilo que Kitty pressentira tão claramente no espelho do rosto de Anna, reconheceu em Vrónski. O que havia acontecido com a sua maneira sempre calma e firme e com a expressão serena e despreocupada do seu rosto? Não, agora, toda vez que ele se voltava para Anna, curvava um pouco a cabeça, como se quisesse atirar-se diante dela, e no olhar de Vrónski só havia uma expressão de submissão  e de temor. "Não desejo ofendê-la", parecia dizer o seu olhar, a cada instante, "mas quero salvar-me, e não sei como". Em seu rosto, havia uma expressão que Kitty jamais vira".

Anna sorria, e seu sorriso contagiava Vrónski. Ela se punha pensativa, e ele se fazia sério. Alguma força sobrenatural atraía os olhos de Kitty na direção do rosto de Anna. Ela estava encantadora em seu simples vestido preto, eram encantadores seus fornidos braços com braceletes, era encantador o seu pescoço firme com o cordão de pérolas, encantadores os cabelos encaracolados com o penteado em desalinho, encantadores os movimentos leves e graciosos dos pequeninos pés e mãos, encantador o belo rosto com sua vivacidade; mas havia algo de horrível e de cruel no seu encanto.

(Anna Kariênina, Liev TOSTÓI, Trad. Rubens Figueiredo, São Paulo: Cosacnaify, 2013, pp. 91, 92 e 93).







ANNA KARIÊNINA - II

— Eu não sabia que o senhor ia viajar. Por que viaja? — perguntou Anna, depois de baixar a mão, com que quase havia segurado o balaústre. E uma alegria e um entusiamo irresistíveis brilharam em seu rosto.
— Por que viajo? — repetiu ele, fitando-a nos olhos. — A senhora sabe, eu viajo para poder estar onde a senhora estiver — disse. — Não posse agir de outro modo.
Nesse exato momento, como se estivesse vencido um obstáculo, o vento dispersou em borrifos a neve que estava depositada sobre os vagões, fez trepidar alguma chapa de ferro solta e a locomotiva, lá na frente, pôs-se a bramir o apito penetrante, de um modo lúgubre e tristonho. Para Anna, todo o horror da nevasca parecia, agora, ainda mais belo. Vrónski falara exatamente  o que a alma de Anna desejava, mas que sua razão temia. Ela nada respondeu e, em seu rosto, Vrónski viu um conflito.
— Perdoe-me, se o que eu disse não lhe agrada — disse ele, em tom submisso. Falava com cortesia e respeito, mas de um modo tão firme e tenaz que ela, por um  longo tempo, nada conseguiu responder.
— Não está certo o que o senhor disse e eu lhe peço, ser for um homem correto, que esqueça o que acabou de falar, como eu vou esquecer — respondeu, afinal.
— Não posso e nunca esquecerei uma palavra da senhora, nem um movimento da senhora...

(Anna Kariênina, Liev TOSTÓI, Trad. Rubens Figueiredo, São Paulo: Cosacnaify, 2013, p. 111 e 112).



terça-feira, 10 de outubro de 2017

CHE GUEVARA É VENERADO PORQUE TEM SANGUE VERDADEIRO PARA MOSTRAR

Por João Pereira Coutinho

Che Guevara morreu há 50 anos e ainda há quem lhe conceda o benefício da dúvida. Na semana passada, recebi um convite para um "debate" sobre Guevara e o seu legado. Pensei que era piada. Ainda perguntei: "Vocês querem saber se ele matou muito ou pouco?".
Ninguém riu. A ideia era mesmo "debater". Eu estaria entre os "críticos" (muito obrigado) e, do outro lado da mesa, estariam os apologistas. Recusei.
Aliás, quando o assunto são psicopatas, eu recuso sempre —uma questão de respeito pela minha própria sanidade. Nunca me passaria pela cabeça debater seriamente o Holocausto com um negacionista. Por que motivo o comunismo seria diferente? Escutar alguém a defender a União Soviética é tão grotesco como estar na presença de um neonazi a defender Hitler e o Terceiro Reich.
De igual forma, também nunca me passaria pela cabeça convencer terceiros sobre a monstruosidade do nazismo —ou a do comunismo. Como se ainda houvesse dúvidas.
Não há -e, no caso de Guevara, o próprio deixou amplos testemunhos a comprovar a sua excelência. O culto do ódio; a excitação do cheiro a sangue; a necessidade de um revolucionário ser uma "máquina de matar" -o Che não enganava.
E os fuzilamentos, que ele executou ou mandou executar, são ostentados pelo nosso Ernesto como se fossem medalhas na farda de um general. A criminalidade de Che Guevara não é questão de opinião. Isso seria um insulto ao próprio.
Mas há um ponto que me interessa sobre o Che: a sua sobrevivência como símbolo. Atenção: não falo de adolescentes retardados que desconhecem o verdadeiro Che e ostentam na camiseta o retrato que Alberto Korda lhe tirou. A adolescência é uma fase inimputável que, nos piores casos, pode durar uma vida inteira.
Não. Falo dos intelectuais que, conhecendo Che Guevara e o seu "curriculum vitae", o canonizam sem hesitar. O que leva pessoas inteligentes a aplaudir um criminoso?



O sociólogo Paul Hollander dá uma ajuda no seu "From Benito Mussolini to Hugo Chávez - Intellectuals and a Century of Political Hero Worship". O título, apesar de longo, é importante.
Em primeiro lugar, porque Hollander não discrimina entre "direita" ou "esquerda". O totalitarismo só tem um sentido —a sepultura.
Em segundo lugar, porque não é a natureza dos regimes que interessa ao sociólogo; é a devoção dos intelectuais pelos "heróis" revolucionários do século.
No caso de Che, existem explicações históricas —e psicológicas.
As históricas lidam com a Revolução Cubana de 1959, ou seja, três anos depois de Nikita Khrushchev ter denunciado os crimes do camarada Stálin.
A desilusão foi profunda —e, para a "nova esquerda", a União Soviética deixava de ser o farol da humanidade. Era apenas mais um estado opressor (como os Estados Unidos, claro) que atraiçoara a beleza do ideal marxista.
A partir da década de 1960, os "peregrinos políticos" (expressão de outro livro famoso de Hollander) passaram a ver o Terceiro Mundo —Cuba, China, Vietnã, Nicarágua— como o paladino virginal da libertação do homem. Fidel Castro e o seu ajudante Che Guevara ocuparam os papéis principais como "bons selvagens".
Mas existe um motivo suplementar para Che palpitar no peito dos intelectuais, escreve Hollander: o fato de ele não ser um intelectual "defeituoso".
Uma história ajuda a compreender o adjetivo: em 1960, Sartre visitou Cuba e comoveu-se com as confissões de Fidel. "Nunca suportei a injustiça", disse o Comandante. Sartre concluiu que Fidel entendeu como ninguém "a inanidade das palavras".
Tradução: não basta falar contra o imperialismo/capitalismo/colonialismo; é preciso agir. Che Guevara, que Sartre batizou como "o mais completo ser humano do nosso tempo", simboliza essa totalidade. Alguém que não se fica pelas palavras —e passa aos atos. Che Guevara é venerado porque tem sangue verdadeiro para mostrar.
É um erro afirmar que os "intelectuais revolucionários" que admiram Che Guevara continuam a prestar-lhe homenagem apesar da violência e do crime. Pelo contrário: a violência e o crime estão no centro dessa homenagem.
Che sobrevive porque foi capaz de ser o "anjo exterminador" que todos eles sonharam e não conseguiram. 

*Publicado em jornal Folha de São Paulo de 10 de outubro de 2017.