Balança & Espada

"A justiça tem numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força bruta; a balança sem a espada é a impotência do direito" (JHERING)



Jurisprudência

sábado, 21 de janeiro de 2017

A HORA DO CELULAR

Por Rosely Sayão

Muitas crianças e adolescentes estão presentes nos espaços públicos e coletivos neste período de férias. Estão nos shoppings, em parques, em praças, hotéis, restaurantes e lanchonetes, em grupos com seus pares –no caso de adolescentes– ou com as famílias.
Não é nada difícil encontrá-los usando freneticamente seus aparelhos celulares. Vi isso acontecer até com crianças pequenas, com mais ou menos sete anos. E vi adultos, também no mesmo uso frenético do aparelho, muitas vezes sendo demandados pelos filhos, porém sem lhes dar a atenção necessária.
Você, caro leitor, também já deve ter testemunhado esse fato. Será saudável? Foi essa a questão enviada por uma leitora, que pergunta a partir de qual idade devemos liberar o celular para os filhos.
"A partir de quando devemos transformar nossos filhos em zumbis?", pergunta ela. Não é a primeira vez que vamos conversar sobre essa questão, mas os fatos nos pedem mais reflexões –e ações!
Um celular na mão de uma criança transforma-se em um brinquedo que a faz brincar sozinha. Mesmo ao trocar mensagens instantâneas, as crianças continuam sozinhas e –o mais importante– sem usar seu corpo por inteiro.
Sim: esta geração de crianças e jovens tem um controle visomotor absurdamente desenvolvido! Quem já viu uma criança ou adolescente manusear o teclado ou a tela de um aparelho ou o controle de um videogame pode ficar assombrado, tamanha a agilidade que eles têm nos dedos, que respondem ao que veem.



Entretanto, eles não sabem usar seus corpos, quase sempre desajeitados, sem equilíbrio e sem noção de seu espaço vital. É por isso que andam trombando uns nos outros e caindo perigosamente, em situações nas quais deveriam poder se equilibrar.
Além dessa questão, há outra bem delicada: o uso constante desses aparelhos rouba dos mais novos as oportunidades que eles têm de aprender a se relacionar com o outro no espaço comum.
Não é à toa que eles arrumam tantas confusões entre eles e com as chamadas celebridades no espaço virtual: porque eles imaginam que, nesse espaço, os princípios que regem as interações humanas são diferentes dos que existem na realidade.
Eles –como muitos adultos– acham que, no espaço público virtual, podem esconder-se atrás de um apelido ou de um nome falso e falar tudo –tudo mesmo– o que pensam e também o que não pensam, mas que sabem que afeta e magoa o outro, seja ele próximo ou não. Acham também que podem agredir verbalmente, expor intimidades, sejam elas próprias ou do outro, sem consequências.
Tudo isso porque usam o espaço virtual precocemente, sem que tenham aprendido anteriormente os princípios do relacionamento interpessoal e percebido as delicadezas e sutilezas que ele exige de todos.
Não há necessidade alguma de que crianças tenham seus próprios celulares. Quando quiserem muito acessar algo, podem fazer isso com o de seus pais, que, assim, as tutelam de perto e, de quebra, ainda ficam sem o aparelho por um período ao lado de seus filhos.
Mas e se quase todos os colegas deles tiverem seus próprios aparelhos e os portarem sempre que estiverem juntos?
Nesse caso, peço aos pais que pensem bem se esse é um bom argumento para a família ceder qualquer coisa aos filhos. Você acha que é?

Publicado no jornal Folha de São Paulo de 17 de janeiro de 2017, caderno cotidiano, B2

CONHECEREIS A VERDADE E A VERDADE VOS LIBERTARÁ

Por Leandro Karnal

O título do texto é minha passagem preferida no evangelho de João (8,32). Parece ser um programa de vida útil a almas piedosas e a ateus empedernidos. É princípio científico, mas também é místico e programa pessoal. Amanheço com a dúvida de Pilatos para Jesus: o que é a verdade? O Mestre não respondeu.
Minha formação básica ocorreu no colégio São José, em São Leopoldo. Lá os karnais estudam/ensinam há três gerações. Há uma história que atravessa as décadas da escola fundada em 1872: o corredor do diabo. Como num velho filme de terror de Zé do Caixão, advirto aos leitores de sensibilidade aguçada: a narrativa é assustadora. Cardíacos ou pessoas impressionáveis: interrompam a leitura aqui! Foram avisados!
Não existe uma data precisa. O fato está inserido na lógica atemporal do terror. Havia uma capela no último andar da escola. Uma freira rezava, concentrada. De repente, ela sentiu um forte cheiro de enxofre no ar. Estava sozinha. Ao cheiro, somaram-se sons de cascos. A franciscana apavorou-se. Gritou em vão: o som se perdia nas paredes grossas. Sim! Era ele: o próprio Satanás! Por motivos desconhecidos, o príncipe do inferno tinha vindo levar a alma da freira estupefata. Por que levar uma irmã ao mundo demoníaco? Dante Alighieri povoou o reino do capeta com papas. Nada impede que uma humilde freira, por motivos desconhecidos, faça companhia a tão ilustre grupo. Foi-se a orante para a danação. Prova concreta do encontro: a mão peluda e quente do rei da mentira ficou impressa na capa da Bíblia da condenada. A capela foi fechada.
Nunca mais houve sacramentos no espaço. O medo venceu. O silêncio caiu sobre a comunidade.
A história era desmentida e isso aumentava o interesse. Um calouro que chegasse ao São José já perguntava aos veteranos: onde ficava o corredor do diabo? As irmãs advertiam que era boato. A insistência em desmentir atiçava nossa certeza. Por que tanta gente dizia que era mentira? Óbvio: era verdade!
Na infância, acompanhado de bravos amigos, subia aos recantos da vasta escola. Havia dezenas de salas fechadas, corredores escuros, velhos espaços de pé-direito alto e silêncio aterrador. De repente, algum zombeteiro gritava e saíamos em disparada. Nunca encontramos o famoso corredor, tampouco o livro queimado com a manopla infame de Lúcifer. Sem problemas: crença tem relação ambígua com provas materiais. A verdade do corredor do diabo nos escapava ano a ano.

Teria ocorrido a cena horrenda? Uma única vez roçamos nela. Em uma pequena capela de uma ala do colégio que, até então, não tínhamos notado. Tudo indicava ser o local famoso. Era um fim de tarde e encontramos, num nicho lateral, uma assustadora imagem de Nossa Senhora da Cabeça. No lusco-fusco da hora vimos aquela imensa imagem de uma mulher que segurava um decapitado na mão. 
O leitor incréu pode buscar no Google a imagem de Nossa Senhora da Cabeça. Alguém gritou: é a cabeça do diabo! Nunca corremos tanto. Parecia que os cascos caprinos de Belzebu nos perseguiam.
Jamais apuramos a verdade verdadeira. Era uma época de liberdade de imaginação. O mundo mudou. Surgiu um conceito novo: a pós-verdade. O que seria uma verdade desvinculada do factual?
O debate público é dominado por apelos emotivos. Não importam fatos ou dados precisos, vale apenas a manipulação de medos. Na crítica ao stalinismo e a todo totalitarismo, George Orwell fez do romance 1984 uma advertência de como a mentira pode ser transformada de tal forma que dela surgisse uma verdade. Tal como a Inquisição, o Estado Totalitário não quer apenas eliminar a oposição, mas convertê-la, fazê-la crer, sinceramente, na verdade estatal. O traço totalitário está nas democracias.
O dicionário Oxford data o conceito de pós-verdade no ano de 1992. Não precisamos mais do fato concreto, basta a crença. Nas sociedades democráticas de livre-trânsito de ideias, o que confirma minha convicção prévia é verdadeiro. Não busco argumentos ou debate, busco reforço dos valores do meu gueto. Exemplo? O filho de um conhecido político seria dono de uma empresa de produção e distribuição de carne. Verdade? Que absurdo! A empresa desmentiu. Todos os envolvidos desmentiram. Mas vale a lógica que eu tinha na infância: se as freiras desmentem é porque é verdade. Por que é verdade? Aparentemente porque tenho um cunhado cujo primo mora ao lado de um vizinho da manicure de uma contabilista da empresa que jura que é verdade. Também há juízes que são ponta de lança do FBI. Foram treinados nos EUA para desestabilizar o Brasil. Vale tudo na minha crença.
Minha posição prévia deseja que seja verdade. Todos os argumentos serão acolhidos como verdade de acordo com a posição prévia. A era da pós-verdade não é apenas uma era de mentiras. Todas as eras foram de mentiras. A diferença é que, antes, nós poderíamos crescer e descobrir que o corredor do diabo era um mito. Hoje, quase todos ficam felizes na infância mental. Crescer é arriscado. Corro o risco de descobrir que não sou o centro do universo. Pensar dói. Lúcifer se foi, envergonhado pela concorrência desleal. Quem precisa do príncipe da mentira quando se tem rede social? Bom domingo a todos vocês!

Publicado no jornal O Estado de São Paulo de 15.01.2017, no Caderno 2, C9

ANSIEDADE? MELHOR SEM

Por Suzana Herculano-Houzel
(neurocientista, professora da Universidade Vanderbilt e autora do livro The Human Advantage)

Foi um ano difícil: estresse contínuo causado por financiamentos concedidos mas não pagos pelo governo para custear nossa pesquisa, ameaça de fechar laboratório e mandar alunos para casa, campanha de crowdfunding, viagens seguidas para entrevistas para emprego nos EUA, gastos, problemas familiares imprevistos assim que recebi o novo contrato de trabalho, mais gastos, burocracias variadas para mudar casa-laboratório-família-cachorros-coleção-preciosa-de-cérebros para outro país, ainda mais gastos montando casa nova.


Levou um tempo até eu me dar conta, mas depois de meses de tensão contínua, dor muscular e náusea, um mau humor que nunca foi meu e irritação fora do ponto com qualquer deslize de filho e marido –eu, que sempre me orgulhei de não me irritar por bobagem–, não havia mais como ignorar: estava sofrendo de ansiedade crônica, e ela já afetava as pessoas ao meu redor. Fui salva pela nova médica, clínica geral, que agora me acompanha. Nunca tive transtornos mentais além de enxaqueca, nem a menor tendência a depressão. Donde minha surpresa com sua sugestão: quer experimentar Prozac?
O remédio é conhecido como antidepressivo, e por causa da fama, até eu, que supostamente sei alguma coisa sobre como ele funciona, havia esquecido que a mesma ação neurogênica que restaura a motivação, ao agir no estriado, também recupera o freio interno do hipocampo. Sítio de formação de memórias novas, o hipocampo também cuida de manter memórias recentes reverberando, como a lista mental de problemas por resolver. Descarrilado, berra alarmes sem parar.
Aceitei, claro –na pior das hipóteses, eu pararia se tivesse efeitos colaterais horríveis (o que às vezes acontece).
Antidepressivos levam cerca de duas semanas para agir, sinal justamente de que o fazem não ao mudar simplesmente a "química" do cérebro, e sim ao iniciar um processo mais lento de recuperação, que requer gerar células novas.
Eu já havia esquecido que tomava o remédio quando, doze dias depois, entrei em um voo de volta de um congresso para casa. Habituada à cabeça gritando constantemente lembretes e planos, estranhei a novidade: ao tomar meu assento e curtir o momento de desligar tudo, o silêncio interior me chamou a atenção. Era uma sensação de paz mental e tranquilidade que eu não conhecia havia mais de um ano.
Sim, a lista de afazeres continua lá –mas meu cérebro não berra mais comigo o tempo todo. Santa neurociência básica e aplicada: ganhei minha vida de volta.

Publicado no jornal Folha de São Paulo de 17 de janeiro de 2017

DOIS CORAÇÕES E UMA CABANA

Por Contardo Calligaris

"Due cuori e una capanna" é uma expressão italiana (ou especialmente popular na Itália). Seu sentido mais óbvio é que duas pessoas que se amam, para ter uma vida boa, não têm necessidade de riquezas: podem até morar numa barraca –só o básico para se proteger do frio, do sol e da chuva. Talvez nem isso. "Dois corações e uma cabana" significa que o amor é tudo de que precisamos.
De fato, se você estiver passando por um momento de vacas magérrimas, não há dúvida de que um casal companheiro, apaixonado e amigo pode ser de grande ajuda.
Mas o sentido da expressão vai além das contas do fim do mês. "Dois corações e uma cabana" significa também que um casal, rico ou pobre, SE basta, ou seja, não precisa de mais ninguém.
"Passageiros", de Morten Tyldum (em cartaz), é um blockbuster excelente –também pelas reflexões que ele introduz inevitavelmente.
A primeira (sem perigo de spoiler) é: "Será que um casal pode se bastar?". Você viveria 30, 40, 50 anos só com seu companheiro (ou sua companheira)? Cuidado, repito: literalmente SÓ com seu companheiro ou companheira.
Como fica a vida do casal sem vizinhos, queridos ou incômodos? E sem colegas de trabalho, também queridos ou incômodos? Como será a vida na "Casa no Campo" de Elis Regina sem os amigos (sejam eles do peito ou não)?
Alguém poderia pensar que, sem nenhum outro, é mais fácil o casal ficar junto para sempre –sem tentações, seduções, distrações"¦
Mas a questão não é só se um casal se basta sem mais ninguém (para amar, para admirar ou para detestar, tanto faz). A questão é também: será que um casal se aguenta se o único propósito da vida de ambos for, justamente, viver juntos e se amar?
Os protagonistas de "Passageiros" fazem parte de milhares de colonos que dormem hibernados numa nave espacial que chegará a sua destinação (um mundo novo, uma colônia) depois de uma viagem de 120 anos.



Ora, eles acordam 90 anos antes do momento previsto, e não há como voltar a dormir. Pedir ajuda a alguém na Terra levaria o tempo de uma vida inteira.
Agora, por que se queixar? Não é a realização do ideal dos dois corações com uma cabana? Não é isso que os amantes sempre deveriam querer: apostar na felicidade a dois, como se os outros não existissem?
Uma questão volta regularmente quando um casal se interroga sobre o que não está funcionando: a vida social atrapalha ou enriquece a relação?
Os membros de um casal podem se olhar reciprocamente nos olhos: é o olhar patético, tocante e um pouco ridículo. Eles podem olhar na mesma direção (e não um para o outro): é o olhar atarefado, numa obra comum. Eles podem olhar cada um numa direção que lhe é própria: é o olhar desejante (cada um segue seu desejo e apenas gosta de ter o outro do seu lado na sua empreitada, que é diferente da do outro).
Dos três olhares, o mais perigoso é o patético, em que cada um seria o propósito da vida do outro. Se olhar muito tempo olho no olho é quase sempre um bom começo para se estrangular.
Agora, outra reflexão (também sem spoiler). Minha avó dizia que, quando um casal se junta, uma das famílias perde e a outra ganha mais um filho ou uma filha.
Na verdade, é normal que um amor nos arranque de uma vida que estava relativamente pronta, de um caminho já traçado.
Por amor a gente pode renunciar a profissão, filhos, família, outro casamento, sonhos, nação, religião"¦
O amor, em suma, é um grande fator de mudança –se não o maior.
Mais de uma vez, um amor me fez mudar de país, de língua e de caminho. Os amores me afastaram de minha família de origem. Lamento?
Não sei, talvez. Se tivesse ficado com minha primeira mulher, seria fotógrafo. Se tivesse ficado com a mãe de meu filho, seria psicanalista na França. Enfim, não sei se o amor nos transforma, mas ele quase sempre nos engaja por novos caminhos.
Os amores, numa palavra só, arrebatam –um pouco por sua virulência e um pouco (suspeito) por nossa própria vontade de sermos arrebatados, de encontrar razões para mudar: "Leve-me para longe daqui. Salve-me da família, do hábito, do destino já escrito para mim".
Por isso mesmo, quando o casal acaba ou simplesmente quando ele corre perigo, sempre tendemos a acusar o outro pela mudança que ele produziu em nós: "Mas por que você me tirou de onde eu estava?".

MASTURBAÇÃO

Por Francisco Daudt

"É fazer amor com a pessoa que você mais ama", nas palavras de Woody Allen. Já Stanislaw Ponte Preta dizia que a vantagem dela era "não ter que levar em casa depois".
O que parece anedota contém dois princípios que fazem da masturbação o que ela é: segurança e independência. Sua história individual se inaugura quando um bebê descobre que sugar o dedo acalma e satisfaz enquanto "a coisa real" não acontece. É assim que ele tolera a vida real: recolhendo-se ao autoerotismo.
Nossa vida inteira será assim, um zigue-zague permanente entre o investimento no mundo externo e o recolhimento ao nosso refúgio interno. Para se ter ideia da importância desse recolhimento, uma boa maneira de se torturar alguém é privá-lo do sono. Se nós não pudermos nos refugiar a um colo autoerótico, independente e seguro –o sono–, não toleraremos viver. Chegada a noite, nós desligamos o mundo externo: luz, temperatura e silêncio, buscamos uma posição confortável e nos entregamos a um devaneio gostoso que nos embale como um regaço acolhedor. É nessa situação que recarregamos nossas baterias para poder reinvestir no mundo. O sono poderia ser chamado de vício solitário pelo tempo que dedicamos a ele –um terço da vida– se a definição de vício não incluísse o prejuízo de nossos principais interesses. Mas não, o sono é a maior demonstração de que o autoerotismo é essencial para se viver.
Voltando à masturbação genital, ela desempenha um papel fundamental nessa situação desgraçada em que a mãe natureza nos meteu: nós somos animais sexuados, ou seja, nós precisamos negociar com o mundo externo para a reprodução acontecer (as bactérias não sofrem disso). Essa negociação trabalhosa só terá sucesso se nós conhecermos minimamente o nosso desejo. Sem isso, não haverá nem motivação, nem ereção. É onde entra o autoerotismo: só o devaneio (ou o filme pornô) certo acende o tesão, é desse jeito que vamos aprendendo sobre nós.
Dito assim, pareceria que a masturbação é só para homens, mas o que vejo na clínica é que as mulheres muitas vezes só descobrem o orgasmo através dela. Basta pensar que, como praticamente não há homem que nunca tenha se masturbado (Gore Vidal dizia que, se frequência é critério de normalidade, então a masturbação é a vida sexual normal dos homens), não há homem que não conheça o orgasmo, que é um circuito cerebral aprendido com o autoerotismo.
Por fim, a masturbação vicia? Qualquer coisa que nos interesse tem o potencial de nos viciar: internet, WhatsApp, celular, comida etc. Mas em 40 anos de clínica só encontrei um único cliente viciado nela. Ela prejudicava seus principais interesses: ele perdia trabalho, tinha largado o mundo de lado. Usava a masturbação como remédio para aliviar sua depressão (o álcool continua sendo o "remédio natural" mais usado).
Não é de espantar que quem queira controlar as pessoas queira controlar a masturbação: fazê-la contra a lei, censurar a internet, torná-la pecado mortal, dizer que ela adoece ou faz crescer pelos nas mãos. Ela é uma grande professora de independência e autonomia. Muito subversiva, portanto.

Publicado no jornal Folha de São Paulo de 18 de janeiro de 2017, caderno cotidiano, B2

A REVOLTA DOS BURROS

Por Luiz Felipe Pondé

Passado o frenesi da indignação com o ocorrido nas prisões, podemos pensar um pouco sobre aquele inferno. Digo de cara que não acredito na indignação regada a queijos e vinhos.
Vamos dos argumentos mais óbvios (e nem por isso menos verdadeiros), aos menos óbvios. Chegando mesmo aos que parecem obscuros aos inteligentinhos.
Óbvios: o Estado brasileiro é canalha, irresponsável, os dirigentes mentem, não estão nem aí para a vida dos presos (nem de ninguém), prender todo mundo num cubículo de lata é querer que se matem, o crime organizado cresce em meio ao vácuo do poder público, há uma crise no sistema prisional, há corrupção, as autoridades não fazem diferença entre um ladrão de galinha e um serial killer, pobre e preto sempre vai mais preso do que branco coxinha. Tudo verdade.
Menos óbvios: esse tema dá aos foucaultianos um gozo que beira o orgasmo porque Foucault achava que soltando os presos faríamos a verdadeira revolução. Será que ele alguma vez teve que encarar algum bandido querendo mata-lo?
O PCC chega mesmo a tirar lágrimas de alguns foucaultianos com sua declaração de fundação regada a direitos humanos. Uma das razões que torna muito do que os intelectuais falam risível é o fato de que vivem uma vida muito segura em seus casulos corporativos em universidades blindadas ao conhecimento e a qualquer tipo de risco.
Para foucaultianos sofisticados, os bandidos são vítimas da ordem social repressiva e mostram em seu comportamento a doença social, por isso, os trancamos nas cadeias para "esquecermos" de nossa patologia social. Esse tom surgiu em algumas indignações, mas com um certo cuidado porque essa moçada está um pouco assustada com a "revolta dos burros".



Quase obscuros: o que vem a ser essa "revolta dos burros"? Primeiro um reparo geopolítico mais amplo. Com a vitória de Trump, a inteligência pública começou a falar de novo em populismo. O segredo do Trump é ele falar o que o povo americano "burro" pensa. Os "burros" que falam inglês. A inteligência pública há muito tempo está alienada do "povo", entrincheirada nas universidades e nas redações da mídia, falando sempre a mesma coisa: "como esse povo é burro e fala que bandido bom é bandido morto?"
A inteligência pública está de costas para o povo comum e preocupada com sua carreira e seu sucesso nas redes sociais. Avancemos um pouco mais nesses argumentos obscuros.
Pois é. Os populistas atuais crescem na mesma medida em que insistimos em pensar que vivemos uma "revolta dos burros", mesmo que não digamos dessa forma explícita. A inteligência está tão acostumada com queijos e vinhos que esquece o tal do povo.
Os populistas crescem na mesma medida em que os "burros" sentem que o sistema político profissional e os inteligentes não estão nem aí pra eles. Por isso sentem que os inteligentes "só defendem os bandidos". Um adendo: existe "burro" preto e pobre e "burro" branco e rico, ok?
Vamos "ouvir os burros" um pouco? Pelo menos imaginar que podemos ouvi-los. Quem sabe essa "revolta dos burros" pode indicar algo importante por detrás?
Eu arriscaria dizer que esses "burros" se sentem abandonados pelo Estado e pela inteligência pública de forma crassa no seu dia a dia. Esquecidos em seus impostos, acharcados por uma burocracia assassina e destruidora de qualquer iniciativa profissional que não seja apenas viver de salário e "direitos trabalhistas", em suas filas da saúde e do transporte público. Escolas são um lixo. Andam com medo nas ruas. E não dá pra convencer ninguém que de fato pode ser assaltado ou morto por um bandido de que Foucault tem razão e que quando você é assaltado, você é o bandido, e o bandido é a vítima. Risadas?
Abandonados a sua solidão de "cidadãos honestos" (atenção! Os inteligentinhos acham que ninguém é mais honesto do que um traficante de drogas), "os burros" sentem que seu esforço cotidiano para viver dentro da lei, cuidando de suas famílias (mas que coisa mais classe média, não?) não tem nenhum valor. E estão aprendendo a dizer o que pensam. Ai virá a "revolta dos burros" de carga.

Publicado no jornal Folha de São Paulo de 16 de janeiro de 2017, caderno ilustrada, C6


         

A LOUCURA DE DYLANN ROOF

Por Contardo Calligaris

Em junho de 2015, em Charleston (Carolina do Sul, EUA), Dylann Roof, 21 anos, atirou nos fiéis, todos negros, que estavam rezando na Emanuel African Methodist Episcopal Church, uma igreja antiga e gloriosa para a comunidade negra norte-americana –desde o tempo da escravatura até a época da luta pelos direitos civis. Foi por essa relevância simbólica que Roof escolheu o lugar do seu ataque.
Balanço: nove mortos e três feridos. No primeiro depoimento, Roof confessou sua matança rindo. E disse que pensava ter matado só quatro ou cinco, no máximo. Quando soube que eram mais, pareceu satisfeito.
Roof declarou ter agido na esperança de iniciar e fomentar assim, pelo seu ato, uma guerra racial.
Uma das vítimas lhe perguntou por que ele estava atirando. Roof o matou respondendo: "Vocês estupram nossas mulheres e estão assumindo o controle do nosso país. Vocês tem que ir embora".
Em dezembro de 2016, Roof foi reconhecido culpado por um tribunal federal. Em janeiro começou a segunda fase do processo, em que seria decidida a pena.
Nessa fase, Roof pediu para ser o advogado de si mesmo, porque não queria que seus defensores atenuassem sua culpa alegando sua insanidade mental. Contra a vontade de Roof, a defesa pediu que ele fosse declarado doente e incapaz de ser advogado de si mesmo.
Numa nota de seu diário, Roof escreveu: "Quero declarar que sou moralmente oposto à psicologia. É uma invenção judaica, que só inventa doenças e diz às pessoas que elas têm problemas que elas não têm".



Robert Dunham, que dirige o Death Penalty Information Center (centro de informação sobre a pena de morte) comentou: "Imaginemos que o júri enxergue Roof como mau, ou seja, como alguém que fez a escolha consciente e racional de matar pessoas inocentes e devotas, e isso, na intenção de fomentar o ódio racial. Nesse caso, a condenação de Roof à pena de morte é muito mais provável do que se o júri acreditasse que ele é uma pessoa jovem e profundamente doente, que agiu sob a influência de crenças racistas delirantes".
Ora, Roof não quer que suas ideias e motivações sejam consideradas doentias. Em 4 janeiro, na abertura da segunda fase do processo, ele disse aos jurados:
"Vocês devem ter ouvido que a razão pela qual eu escolhi ser advogado de mim mesmo é para evitar que meus advogados me apresentem de maneira errada. Isso é absolutamente correto."
"Eu me represento, não vou mentir sobre mim mesmo. Meus advogados me obrigaram a passar por duas audiências de capacidade mental, não porque eu teria um problema. ["¦] O ponto é que eu não vou mentir para vocês ["¦] Não há nada de errado comigo psicologicamente."
Entendemos facilmente de onde vem o horror que essa declaração nos inspira. Em síntese, para nós, é mais fácil admitir a existência de uma doença ou do erro do que a existência do mal.
Preferimos pensar que Roof esteja errado (mal-informado, extraviado pelas redes sociais etc.) ou, então, que seu erro seja efeito de uma tremenda neurose familiar ou de uma psicose a pensar que ele seja "apenas" alguém que pensa diferente de nós.
Imaginamos ser "tolerantes" e abertos, mas, no fundo, preferimos imaginar que quem pensa diferente de nós esteja doente. Numa briga, o último recurso do ódio é um "Vai se tratar", que condena tudo o que o outro diz e faz à irrelevância.
Enfim, onde estaria a doença de Roof?
1) Ele seria doente pelo que acredita e que motiva sua ação. OK, mas distinguir o "certo" do delirante não é simples. Muitas de nossas crenças são extravagantes quanto as de Roof; só não percebemos sua extravagância porque as compartilhamos com muitos outros. Um delírio coletivo não parece mais um delírio (pense nos dogmas religiosos, por exemplo).
2) Ele seria doente por causa da certeza absoluta, que o impede de discutir e mudar de opinião. De fato, na clínica, a sensação de certeza incontestável é a marca do delírio. Mas essa certeza se tornou hoje um sintoma social banal: é por isso que, na internet, parece que todos procuram apenas o que confirma suas crenças.
Em suma, Roof pode ser louco, mas não é fácil dizer por quê.
Agora, para Roof, ser considerado doente implicaria a irrelevância de seus pensamentos e de seu ato, como "coisa de louco". Seria melhor e mais digno ser condenado à morte, como ele foi em 13 de janeiro. A execução, como sempre acontece, vai levar tempo.

Publicado no jornal Folha de São Paulo de 19 de janeiro de 2017, caderno ilustradam, C8.