Balança & Espada

"A justiça tem numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força bruta; a balança sem a espada é a impotência do direito" (JHERING)



Jurisprudência

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

OAKESHOTT PARA O SÉCULO 21

Por João Pereira Coutinho.


Em 1990, morria Michael Oakeshott. E os jornais britânicos, com seus generosos obituários, questionavam seriamente se o país tinha perdido o seu maior filósofo.

A pergunta deixou vários espíritos confusos. Espíritos refinados, para começar, que não tinham lido Oakeshott. Mas também pessoas “comuns”, vizinhas do dito filósofo, e que jamais pensaram que aquele velhinho simpático que vivia junto a elas, na zona rural do Dorset, era um homem de renome.

Sim, ele tinha por hábito dirigir pelas redondezas a velocidades alarmantes. Mas, tirando essa bizarria, habitava uma casa modesta com a mulher (a terceira ou a quarta, já não sei) e fazia questão de reparar os telhados ou cuidar do jardim. O maior filósofo britânico do século 20?

A culpa é do próprio, se culpa é a palavra certa. Escreveu muito. Publicou pouco. E a carreira acadêmica foi mínima. Mas vamos às apresentações.

Michael Joseph Oakeshott nasceu em 1901. Formou-se em história na Universidade Cambridge. Passou pelas universidades de Marburg e Tübingen. Serviu o país na Segunda Guerra Mundial.

E, em 1951, substituiu Harold Laski, um pensador marxista, na London School of Economics. De 1951 a 1968, a cátedra de ciência política foi dele. Quem assistiu às aulas nunca mais esqueceu o brilhantismo do homem.



Lamento por não ter assistido. Mas, se existe autor que releio sempre que posso, só para não me esquecer do essencial, é Oakeshott. O seu “Rationalism in Politics”, livro de ensaios, tem essa proeza rara de combinar grande filosofia com grande literatura. Como em Montaigne, que ele amava.

E o seu “On Human Conduct” —conhecido pelos alunos aterrorizados como “the black book”; e não é pela cor da capa— é uma obra-prima do pensamento político contemporâneo.

Enquanto esses livros não estão traduzidos no Brasil, existe “A Política da Fé e a Política do Ceticismo”, que a É Realizações acaba de editar com prefácio de Luiz Felipe Pondé, introdução de Timothy Fuller e posfácio do tradutor Daniel Neto.

É um trabalho póstumo, publicado em 1996, em que o autor se ocupa da “fé” e do “ceticismo” políticos, ou seja, sem nenhuma conotação religiosa (fé) ou filosófica (ceticismo). Defende Oakeshott que esses dois polos marcam a modernidade dos últimos cinco séculos ao apontarem ao poder político dois caminhos distintos.

A “política da fé” se alicerça na busca da perfeição terrena, procurando eliminar a ação da contingência ou a mera dúvida humana. É o produto da passagem do mundo medieval para o absolutismo monárquico, quando um brutal acréscimo de poder alimentou nos teóricos e nos príncipes a noção prometeica de que era possível refazer o mundo.

Nesses alvores da modernidade, encontramos também a “política do ceticismo”. Não como resposta direta à “política da fé”; mas como um entendimento distinto da natureza e do alcance do poder.

Para os partidários do ceticismo, a função de um governo é manter um conjunto de direitos, deveres e formas de reparação —um “modus vivendi”— sem pretender dirigir uma sociedade a um fim determinado. São os homens que devem escolher os seus fins, sem a tutela paternal de um governante.

A proposta de Oakeshott é importante porque abandona as divisões clássicas entre esquerda e direita, nascidas no contexto da Revolução Francesa.

Como o autor explica, é possível encontrar seguidores da fé e do ceticismo em todas as famílias políticas, uma evidência que a história não se cansa de provar. Os monismos perfectibilistas do comunismo ou do nazismo são duas expressões de fé; mas qualquer ideologia política antipluralista, seja de esquerda ou de direita, está mais próxima da fé que do ceticismo.

Porém, não se pense que só a “política da fé” tem consequências ruinosas. O ceticismo também pode ser acometido pela sua “nêmesis” característica: a paralisia e o relativismo.

O livro de Oakeshott, como qualquer grande obra de filosofia, não envelheceu uma ruga. Basta contemplar a política ocidental para vermos como a tentação dos extremos domina a selva pública.

De um lado, o fanatismo da fé, a arrogância simiesca de quem acredita ter na mão a chave da história.

Do outro lado, a estagnação e a frivolidade de quem é incapaz de reformar ou liderar racionalmente as democracias ocidentais. A via média entre os extremos, defendida por Oakeshott, está hoje abandonada.

É um cenário que dá vontade de desaparecer. Exatamente como Oakeshott desapareceu na paisagem belíssima da Inglaterra rural.

* Folha de S.Paulo, 18.12.2018, ilustrada, C6.