Balança & Espada

"A justiça tem numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força bruta; a balança sem a espada é a impotência do direito" (JHERING)



Jurisprudência

domingo, 19 de julho de 2015

EXCESSO OU FALTA DE SENTIDO?

POR CONTARDO CALLIGARIS

Tempo atrás, postei no meu Twitter: "Angústia é descobrir que somos pedaços de carne largados num planeta perdido e menor, e que tudo isso não faz sentido algum". Talvez esse seja meu post mais popular, o que mais foi e continua sendo retuitado.
Sigo concordando com ele: há uma dimensão da angústia que provém da sensação de sermos reduzidos a um aglomerado de células sem história e sem palavras explicativas, ou seja, sem nada que diga por que e para o quê existimos (nós e o mundo).
Prova disso, há um exercício comportamental que pode aliviar as crises de angústia e pânico: a gente relembra (articulando as palavras) quem somos, onde estamos, quem são nossos próximos, o que fazemos, com quem nos relacionamos etc. O sofrimento é acalmado pela evocação de um sentido qualquer para nosso momento de vida e nosso lugar no mundo.
Do lado oposto, existem delírios de referência tão flóridos que, numa fuga acelerada do pensamento, o indivíduo passa a acreditar que absolutamente tudo faz sentido –por exemplo, tudo se refere a ele, e o mundo só fala nele. Esses momentos de excesso de sentido são tão dolorosos quanto o deserto de uma crise de angústia.
Você acha o excesso de sentido mais raro do que sua falta? Não sei. Há uma sutil fronteira entre o excesso de sentido de um delírio paranoico e o que acontece a cada hora na internet, na evocação de cumplicidades ocultas e complôs escusos graças aos quais nada é por acaso: tudo o que acontece tem sentido.
Entre esses dois extremos (a derrelição e o pleno sentido) se situa o sofrimento comum, numa espécie de incerteza: sofremos pela falta do sentido ou por seu excesso? Melhor dito, sofremos MAIS pela falta ou pelo excesso de sentido?
Na coluna da semana passada, perguntava-me se as religiões (que dão sentido a nossas vidas) são necessárias para aguentarmos viver.
A pergunta agora pode ser mais complexa: a religião (como exemplo do que pode dar sentido à nossa vida) é um remédio contra a angústia do nada, mas não pode ser ela a fonte do sofrimento que vem do excesso de sentido?
Além disso: será que precisamos de sentido ou poderíamos viver sem sentido algum? Não sei responder.
Constato que, em qualquer terapia pela palavra, coexistem duas atitudes opostas.
Há a tentativa de aliviar e curar o sofrimento revelando, descobrindo ou inventando um sentido para os acontecimentos da vida (é a atitude do conselheiro espiritual, do padre, mas também pode ser a do psicoterapeuta, no exemplo que dei antes, para reagir a uma crise de pânico).
E há a tentativa de aliviar e curar o sofrimento criticando e denunciando o sentido, como se fosse sempre uma ilusão. É a atitude de quem aposta que seja possível pegar mais leve na vida –viver sem precisar atribuir um sentido ao que ocorre e ao que fazemos.
A própria psicanálise oscila entre essas duas atitudes, ou seja, entre interpretações que preenchem nossa vida e nossa história de sentido e outras que revelam que o sentido de tal ou tal outro momento de nossa vida é quase sempre uma ficção ou, pior, um engodo.
Talvez essa oscilação seja a consequência inevitável do fato de que o sofrimento de quem pede ajuda a um terapeuta oscila mesmo entre o excesso e a falta de sentido.
Nenhum sentido parece ser suficiente para responder ao sentimento de derrelição, mas os sentidos que inventamos são sempre em excesso –um pouco como aquele neurótico que, para se impedir de desejar as pernas da irmã, que sempre usava saia curta, decidira tapar com toalhas longas as pernas de todas as mesas de casa.
O excesso de sentido é algo que conhecemos bem: a maioria de nossos sintomas são produzidos por ele –vivemos para expiar uma culpa, agimos para mostrar rebeldia, para ganhar aprovação etc.: os afetos da infância pesam em cima de nós, dão um sentido à nossa vida, mas nos oprimem.
O sentido oferece uma compensação: somos "pesados", viajamos cheios de malas, mas nossa viagem é, por assim dizer, justificada –ela acontece por alguma razão, que podemos até ignorar, mas que supomos e graças à qual acreditamos que não estamos no mundo à toa.
O que conhecemos menos é a leveza que seria possível se conseguíssemos parar de procurar desesperadamente um sentido –sem cair no desespero ao descobrir que talvez, de fato, não haja sentido algum.

Em jornal Folha de São Paulo de 16 de julho de 2015
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