Balança & Espada

"A justiça tem numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força bruta; a balança sem a espada é a impotência do direito" (JHERING)



Jurisprudência

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

SIDARTA - Hermann Hesse (último capítulo)

PROCURA
"Quando alguém procura muito – explicou Sidarta – pode facilmente acontecer que seus olhos se concentrem exclusivamente no objeto procurado e que ele fique incapaz de achar o que quer que seja, tornando-se inacessível a tudo e a qualquer coisa porque sempre só pensa naquele objeto, e porque tem uma meta, que o obceca inteiramente. Procurar significa: ter uma meta. Mas achar significa: estar livre, abrir-se a tudo, não ter meta alguma. Pode ser que tu, ó venerável, sejas realmente um buscador, já que, no afã de te aproximares da tua meta, não enxergas certas coisas que se encontram bem perto dos teus olhos".

SABEDORIA
"a sabedoria não pode ser comunicada. A sabedoria que um sábio quiser transmitir sempre cheirará a tolice".
(...)
"Os conhecimentos podem ser transmitidos, mas nunca a sabedoria. Podemos achá-la, podemos vivê-la; podemos consentir em que ela nos norteie; podemos fazer milagres através dela. Mas não nos é dado pronunciá-la e ensiná-la".

TEMPO E PERFEIÇÃO
"Nenhuma criatura humana, nenhuma ação é inteiramente Sansara nem inteiramente Nirvana. Homem algum é inteiramente santo ou totalmente pecador".
(..)
"— Presta atenção, meu querido, muita atenção! O pecador que eu sou, e que tu és, é pecador, mas um dia voltará a ser Brama. Em determinado momento alcançará o Nirvana e será o Buda. Mas, olha bem: esse 'um dia' é apenas uma ilusão, um termo convencional. O pecador não se encontra a caminho do estado de Buda; não está em plena evolução, muito embora o nosso cérebro seja incapaz de imaginar as coisas de outro modo. Pelo contrário, no pecador já se acha contido, hoje, agora mesmo, o futuro Buda. Todo o seu porvir já está presente. Tu deves respeitar na pessoa desse pecador, na tua própria pessoa, na de qualquer homem, o Buda em botão, o Buda possível, o Buda oculto. O mundo, amigo Govinda, não é imperfeito e não se encaminha lentamente rumo à perfeição. Não! A cada instante é perfeito. Todo e qualquer pecado já traz em si a graça. Em todas as criancinhas já existe o ancião. Nos lactentes já se esconde a morte, como em todos os moribundos há vida eterna. A homem algum é dado perceber até que ponto o seu próximo já avançou na senda que lhe coube. No salteador e no jogador, o Buda espera a sua hora, e no brâmane, o salteador. Na meditação profunda oferece-se-nos a possibilidade de aniquilarmos o tempo, de contemplarmos, simultaneamente, toda a vida passada, presente e futura. Então tudo fica bem; tudo, perfeito; tudo, Brama. Por isso, o que existe me parece bom. A morte, para mim, é igual à vida; o pecado, igual à santidade; a inteligência, igual à tolice. Tudo deve ser como é. Unicamente o meu consenso, a minha vontade, a minha compreensão carinhosa são necessários para que todas as coisas sejam boas, a ponto de somente me trazerem vantagens, sem nunca me prejudicarem. No meu corpo e na minha alma fiz a experiência de quanto carecia do pecado, da volúpia, da cobiça de bens materiais, da vaidade, de quanto precisava até do mais abjeto desespero, para que aprendesse a desistir da minha obstinação, a querer bem ao mundo, a cessar de compará-lo a qualquer outro mundo imaginário, que correspondesse aos meus desejos, a algum tipo de perfeição brotado do meu cérebro e para que, deixando-o tal como é, me limitasse a amá-lo e a gostar de fazer parte dele…".




TRANSFORMAÇÃO
"— Isto é uma pedra, mas daqui a algum tempo talvez seja terra, e da terra se transformará numa planta, ou num animal, ou ainda num homem. Em outra época, quem sabe, eu teria dito: 'Essa pedra é apenas uma pedra. Não tem nenhum valor. Pertence ao mundo da Maia. Como, no entanto, pode acontecer que, no decorrer do ciclo das metamorfoses, ela se converta num ser humano e adquira espírito, presto certa atenção a ela'. Eis o que, provavelmente, eu teria pensado naqueles tempos. Hoje, porém, raciocino assim: 'Esta pedra é pedra, mas é também animal, é também Deus, é Buda'. Não lhe tributo reverência ou amor, porque ela um dia talvez possa se tornar isso ou aquilo, senão porque é tudo isso, desde sempre e sempre. E precisamente por ser ela uma pedra, por apresentar-se-me como tal, hoje, neste momento, amo-a e percebo o valor, o significado, que existe em qualquer uma das suas veias e cavidades, nos amarelos e nos cinzas da sua coloração, na sua dureza, no som que lhe extraio ao bater nela, na aridez ou na umidade da sua superfície. Há pedras que, ao tato, dão-nos a impressão de tocarmos em sabão ou óleo. Outras são como folhas ou como areia. Cada qual é diferente e profere o Om à sua maneira peculiar. Todas elas são Brama, mas, simultânea e especialmente, são pedras, quer possam ser oleosas ou viscosas. Justamente isso me agrada. Parece-me maravilhoso, realmente digno de veneração... Não me obrigues, porém, a falar mais. As palavras deturpam sempre o sentido arcano. Todas as coisas alteram-se, logo que lhes pronunciamos o nome. Então se tornam levemente falsas e ridículas. Pois é. Mas, olha, até isso acho bem feito. Aprovo inteiramente e com o maior prazer o fato de que aquilo que para uma pessoa é um tesouro e uma grande sabedoria represente para os demais homens, rematada tolice.

PALAVRAS
"Sei amar uma pedra, ó Govinda, e também uma árvore ou um pedacinho de sua casca. São coisas, e coisas podem ser amadas. Mas não posso amar palavras. Por isso não me servem as doutrinas. Não têm nem dureza nem maciez, não têm cores nem arestas, nem cheiro nem sabor. Não têm nada a não ser palavras. Talvez seja esta a razão por que não encontres a paz: o excesso de palavras. Pois, Govinda, também a redenção e a virtude, o Sansara e o Nirvana: são meras palavras. Não existe coisa alguma que seja Nirvana. O que existe é apenas a palavra Nirvana.

IDEIA
Respondeu Govinda:
- Não, não meu amigo, Nirvana não é apenas uma palavra. É uma ideia.

Mas Sidarta prosseguiu:
- Uma ideia. Pois não. Confesso-te, meu caro, que não faço muita distinção entre palavras e ideias. Para falar com toda a franqueza: não ligo grande importância às próprias ideias. As coisas têm para mim muito maior significado.
Nessa balsa aí, para dar-te um exemplo, houve um homem, meu predecessor e meu mestre, que durante logos anos, à sua maneira singela, cria no rio e em nada mais. Percebera que a voz do rio se dirigia a ele. Dela aprendia. Ela educava-o e instruía-o. O rio parecia-lhe um deus. Por muito tempo ignorava esse homem que qualquer aragem, qualquer nuvem, ou ave, ou besouro, são igualmente divinos e sabem tanto, podem ensinar-nos tanto quanto aquele adorado rio. Ora, quando esse santo se encaminhou à selva, sabia tudo, sabia mais do que tu e eu, sem professor, sem livros, unicamente por ter acreditado no rio.

REALIDADE E AMOR
"Replicou Govinda:
— Mas, dize-me: aquilo que chamas de coisas é mesmo algo real, algo essencial? Não será apenas uma ilusão da Maia, simples miragem, pura aparência? Essa tua pedra, tua árvore, teu rio, são ou não são realidades?

— Esse problema — disse Sidarta — não me preocupa tampouco. Quanto a mim, as coisas podem ser mera aparência, uma vez que, neste caso, também eu sou aparência, e assim serão elas sempre meus iguais. Eis o que as torna para mim tão caras e venerandas: são como eu. Por isso posso amá-las.
E com isso te comunico uma doutrina que te fará rir, ó Govinda: tenho para mim que o amor é o que há de mais importante no mundo. Analisar o mundo, explicá-lo, menosprezá-lo, talvez caiba aos grandes pensadores. Mas a mim me interessa exclusivamente que eu seja capaz de amar o mundo, de não sentir desprezo por ele, de não odiar nem a ele nem a mim mesmo, de contemplar a ele, a mim, a todas as criaturas com amor, admiração e reverência.

— Compreendo — disse Govinda. — E, no entanto, é precisamente isso o que o Augusto qualificava de ilusão. Ele proclamou a benevolência, a tolerância, a compaixão, o comedimento, mas nunca o amor. Pelo contrário, proibiu-nos ligarmos o nosso coração amorosamente às coisas terrenas.

— Sei disso — tornou Sidarta, cujo sorriso resplandecia como ouro. — Sei disso, ó Govinda. Imagina só: neste instante já nos enredamos na confusão das opiniões. Estamos em plena discussão a propósito de palavras. Pois bem, não posso negar que as palavras que proferi a respeito do amor estão em desacordo com os ensinamentos de Gotama. Justamente por isso desconfio tanto de quaisquer palavras, porquanto sei que essa divergência é apenas ilusão. Tenho certeza de estar concorde com Gotama. Como seria possível que Ele desconhecesse o amor; Ele que reconhecia a efemeridade e a fraqueza de toda a natureza humana e todavia amava os homens a ponto de devotar a sua longa e laboriosa existência à única tarefa de ajudá-los e ensiná-los. Também com relação a Ele, teu grande mestre, as coisas têm, a meu ver, mais valor do que as palavras. O gesto da sua mão me importa mais do que as suas opiniões. Não é nos seus discursos e nas suas ideias que se me depara a sua grandeza, senão unicamente nos seus atos e na sua vida.

Sidarta — Hermann Hesse (tradução de Herbert Caro, Rio de Janeiro: Record, 2020, 66ª edição, 173 páginas).