Balança & Espada

"A justiça tem numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força bruta; a balança sem a espada é a impotência do direito" (JHERING)



Jurisprudência

domingo, 1 de março de 2015

A MÓRBIDA HISTÓRIA DA OBSESSÃO PELOS ZUMBIS

POR OTÁVIO FRIAS FILHO

RESUMO Sucessor de "Frankenstein" e "Drácula" no imaginário macabro, o mito dos zumbis, originário do Haiti, ganhou fôlego no cinema e nos quadrinhos. A série "The Walking Dead", exibida no Brasil às segundas-feiras, às 22h30, pelo canal Fox, é o mais recente e desenvolvido produto da proliferação cultural dos mortos-vivos.
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A série de TV paga "The Walking Dead" é o produto mais recente -e mais desenvolvido, ao entrar há três semanas na segunda parte do quinto ano- de uma epidemia cultural: a obsessão por zumbis. Tem sido vertiginosa, nas últimas décadas, a proliferação de filmes, séries televisivas, histórias em quadrinhos, paródias e videogames em torno desse tema bizarro.
Quando certa mitologia irrompe e se dissemina assim, não demoram a aparecer interpretações que a associam ao espírito da época. As histórias de zumbi devem expressar, em termos de entretenimento ou arte pop, alguma angústia essencial, inconsciente e coletiva que atravessa fronteiras. À sombra das produções comerciais, surgiu uma ensaística, sobretudo nos departamentos norte-americanos de estudos culturais, voltada a essa dissecação.
Terrorismo, minorias, fanatismo religioso, a exaustão ambiental, a massa de excluídos ou a própria sociedade de consumo -as mais diversas figuras de medo social e crítica política já foram projetadas sobre a superfície amorfa, passiva e plástica das hordas perambulantes de zumbis. É como se este fosse um mito-ônibus em que coubessem todos os significados. Sugestivo, aliás, que sua ameaça imaginária ocorra numa era de superpopulação global e de frequência inédita nos contatos com a alteridade étnica, por causa da popularização das viagens internacionais, das migrações e da internet.

Frank Ockenfels 3/AMC 
Cena de episódio da quinta temporada da série "The Walking Dead", adaptação de HQ lançada em 2003
Cena de episódio da quinta temporada da série "The Walking Dead", adaptação de HQ lançada em 2003
 
Como o medo do "outro", o temor aos mortos é generalizado entre as culturas. Parece plausível considerá-lo resquício evolutivo que premia comportamentos de aversão à matéria orgânica decomposta, propícios a reduzir os riscos de contágio e intoxicação. Como esse temor costuma ser esconjurado por rituais para aplacar a suposta ira dos mortos, a tradição psicanalítica passou a compreendê-lo como manifestação de culpa pelos desejos inconscientes de matar nossos semelhantes, a começar por um dos progenitores.
No terreno da mitologia macabra, os dois antecessores das histórias de zumbi têm raiz literária. "Frankenstein" (1818), da inglesa Mary Shelley, considerada a primeira obra de ficção científica, explora uma vertente do romantismo, a novela gótica, com suas atmosferas tumulares e motivos fantásticos. Na aurora da Revolução Industrial, o livro induz à ideia de que o homem, violando seus limites quando usurpa o papel divino para manipular a natureza por meio da tecnologia, chamava a si uma sinistra punição. Desde então, a ficção científica reteve esse caráter romântico, reacionário até, na medida em que hostil ao progresso material.
"Drácula" (1897), do irlandês Bram Stoker, é uma história tardia do mesmo gênero, mas seu protagonista, diferente da criatura feita com pedaços de cadáver cerzido que uma descarga elétrica devolve à vida, é um aristocrático vampiro romeno a que não faltam artes de sedução hipnótica e voraz -o que reflete as irrupções de uma sexualidade tão reprimida quanto mal velada, própria do período vitoriano, a época de Freud. Embora o americano H.P. Lovecraft, celebrado autor de histórias fantásticas, tenha deixado uma novela sobre mortos-vivos ("Herbert West - Reanimator", 1922), o gênero surgiu mais tarde, no cinema e nos quadrinhos.
AFRO-AMERICANO
Também em contraste com "Drácula" e "Frankenstein", que se nutriam do folclore europeu, o mito dos zumbis é afro-americano, originário do Haiti. Em 1929, o jornalista William Seabrook publicou um livro de viagens pseudo-etnográfico sobre aquela metade ocidental da ilha caribenha, "The Magic Island". Relata ali que legiões de mortos, ressuscitados por sortilégio, trabalhavam nas plantações de feiticeiros haitianos. O próprio autor ventila uma explicação racional, ao supor que tais latifundiários conhecessem alguma substância capaz de induzir pessoas vivas a um estado catatônico que possibilitava escravizá-las.
Essa crença percorria camadas de ressentimento. A ressurreição dos mortos era vinculada na ilha às sucessivas revogações da abolição depois da Revolução Haitiana de 1791, a única revolta de escravos vitoriosa na história. Movidos pelo interesse de explorar e assegurar abastecimento de açúcar e café produzidos no Haiti, os Estados Unidos mantiveram o país sob ocupação militar entre 1915 e 1934, sustentando um governo fantoche na capital, o que terá dado ensejo às habituais reações de medo e culpa nas camadas mais sensíveis da sociedade invasora. O livro de Seabrook inoculou, assim, a mania de zumbis na cultura popular americana.
Em 1932, estreou nos cinemas "White Zombie", baseado na história. Bela Lugosi, ator de origem húngara que havia encarnado o conde Drácula num filme famoso no ano anterior, faz o papel do feiticeiro. Roteiro e diálogo soam hoje ingênuos, e os efeitos, como se pode imaginar, tosquíssimos; Lugosi é um canastrão experimentado que causou calafrios nas plateias da época ao perfurá-las com seu olhar captado num insistente primeiro plano.
A partir daí o mito entra em latência, encerrado na subliteratura e nos quadrinhos onde continua, por assim dizer, morto-vivo.
Os anos 50 acarretaram uma vaga de medo histérico que respondia a duas ameaças igualmente insidiosas, invisíveis e fulminantes: a radiatividade e o comunismo (figurado muitas vezes na forma de "marcianos", invasores do planeta vermelho). Esse clima reanimou as histórias de zumbi, que se tornaram mais "científicas". No livro "Eu Sou a Lenda"(1954), Richard Matheson imagina certa mutação, causada por acidente radiativo, que converte parte da humanidade numa nova espécie biológica, Homo vampiris. No filme "Zombies of Mora Tau" (1957), pela primeira vez o contágio é abordado numa perspectiva epidemiológica.
'KANE' DOS ZUMBIS
Mas foi somente no simbólico ano de 1968 que apareceu "Night of the Living Dead", ("A Noite dos Mortos-Vivos"), considerado o "Cidadão Kane" dos filmes de zumbi. Nessa obra e nas cinco que se seguiram, o diretor George Romero (tendo por corroteirista, no início, John Russo) criou o mito do zumbi moderno, fixando em imagens seu léxico e sua gramática.
A cena se passa na mais familiar paisagem de subúrbio americano, à maneira das histórias de terror de Stephen King. A mordida dos zumbis propaga o contágio, e eles se revelam canibais também. Seus corpos se apresentam em estágios patéticos de deterioração; seu avanço rumo às vítimas é lento e trôpego (o que permite esticar as cordas do suspense), mas inexorável, pois tendem a se agrupar numa multidão arfante, sôfrega, invencível. Não têm consciência nem enxergam, parece, mas ouvem bem demais.
Romero não se ocupa das causas de seu apocalipse, adotando com displicência a convenção do efeito mutante. Os especialistas gostam de citar a frase de uma personagem de seu filme "Dawn of the Dead" ("O Depertar dos Mortos", 1978) que, quando alguém indaga sobre quem são os zumbis, responde apenas: "Somos nós". O interesse da trama está mais focalizado nos sobreviventes do que nos seus perseguidores -ou antes no que a perseguição faz aflorar naqueles. Pois a procissão de mortos não deixa de ser um espelho escancarado diante dos vivos, que também zanzam em desespero, jogados da noite para o dia num mundo hobbesiano sem lei nem ordem onde a vida é "solitária, pobre, má, brutal e curta".
Apesar da força imaginativa, os filmes de Romero nunca deixaram de ser rudimentares produções B; há algo de Ed Wood no seu sangue de tomate, nas locações improvisadas, na maquiagem amadorística. Outros autores e cineastas seguiram seu exemplo, procurando refinar seu estilo, tornando mais dinâmicos os roteiros e melhor a sua consecução. O ápice dessa evolução é "Guerra Mundial Z" (2013), baseado no romance de Max Brooks e dirigido por Marc Forster -na opinião deste resenhista, o mais satisfatório dentre os filmes do gênero.
FRENÉTICOS
Acostumados à lentidão exasperante dos zumbis, ficamos estarrecidos quando, na frenética sequência inicial, o primeiro deles se atira com fúria sobre um carro, quebra o para-brisa a cabeçadas e investe num átimo contra seus ocupantes. O cinema contemporâneo impõe seu ritmo aos cadáveres desengonçados. Pelo meio do filme, é memorável a cena em que milhares de zumbis se amontoam como formigas fervilhantes até transbordar para dentro de um imenso muro, erigido em torno de Jerusalém no vão esforço de isolar a cidade sagrada.
Em entrevista recente, o diretor brasileiro Fernando Meirelles identificou o cinema com o conto e a série de TV com o romance. "The Walking Dead", que estreou em 2010, foi concebida para o canal AMC por Frank Darabont a partir das histórias em quadrinhos de Robert Kirkman e Tony Moore, publicadas desde 2003. A série tem a excelência técnica de "Guerra Mundial Z". Com mórbido detalhismo, sua cosmética mimetiza a putrefação em toda a terrível variedade de suas cores e formas. Na primeira vez em que alguém espatifa o crânio de um zumbi (única maneira, nas convenções do gênero, de matá-lo em definitivo), o efeito é tão repugnante que a tentação é desligar; na trigésima, você se pega bocejando.
Dada a imensidão de horas disponíveis, porém, a série não se reduz aos horripilantes confrontos entre vivos e mortos, que acontecem quase sempre à luz do dia. Intercaladas com eles, quando as personagens -um bando de sobreviventes que se mantém mais ou menos unido- conseguem pernoitar a salvo num abrigo seguro como uma penitenciária ou igreja abandonada, surgem passagens intimistas nas quais vivem os dramas hobbesianos que opõem o interesse de cada um e a lealdade para com o grupo, em guerra com outros grupos. Os roteiristas têm tempo e fantasia para compor um sombrio tecido psicológico de dilemas, traições, alianças, condutas sublimes e abjetas. Ao longo dos episódios, cada protagonista adquire uma vida intensa e pessoal.
Afinal de contas, trata-se da celebração da vida. Despojada de toda crença transcendental -na pátria, na ideologia, na vida eterna, nos valores tradicionais-, certa de que nada mais existe além do hedonismo calculista do aqui-e-agora, a mentalidade da nossa época está livre para assassinar os defuntos e tripudiar sobre a morte.
OTAVIO FRIAS FILHO, 57, é diretor de Redação da Folha, autor de "Queda Livre" (Companhia das Letras, 2003) e "Cinco Peças e Uma Farsa" (Cosac Naify, 2013).
 
*Publicado no jornal Folha de São Paulo, em 01.03.2015, caderno Ilustríssima, p.3.

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