POR DRAUZIO VARELLA
A saúde no Brasil padece de dois grandes males: falta de dinheiro
e gerenciamento incompetente.
Impossível levar a sério qualquer projeto que não enfrente ao mesmo tempo
esses dois desafios. Investir apenas na organização é tão insuficiente quanto
alocar mais recursos para um sistema perdulário, contaminado pela corrupção e
por interesses políticos da pior espécie.
Há anos gravo programas de educação em saúde pelo interior do Brasil e na
periferia das cidades maiores. Nessas andanças, aprendi que o Programa Saúde da
Família (PSF) foi um grande avanço para o atendimento dos mais necessitados.
Por meio do PSF, iniciado em 1994, equipes formadas por médicos, enfermeiros,
técnicos, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários acompanham até 4.000
pessoas distribuídas em áreas geográficas delimitadas. Seus objetivos são a
"promoção, prevenção, recuperação, reabilitação e manutenção da saúde da
comunidade."
Mais de 30 mil equipes, que contam com pelo menos 250 mil agentes
comunitários, estão espalhadas pelo país. Aos olhos do visitante é notável a
diferença das condições de saúde das populações que contam com elas. Estudo
conjunto das Universidades de São Paulo e de Nova York mostrou que para cada 10%
de aumento da população assistida, a mortalidade infantil cai 4,6%.
Pois bem, esse programa de sucesso precisa de médicos nem sempre fáceis de
atrair, mesmo com salários mais altos. Precisa também de enfermeiras, dentistas
e de técnicos qualificados, mas vamos nos deter na parte médica.
Médicos forçados a passar dois anos nessas equipes antes de receber a
autorização definitiva para clinicar podem dar impulso considerável em busca da
universalização do programa.
Se a Constituição permitir que o Estado obrigue alguém a trabalhar
em local que não deseja, acho que os recém-formados poderão se beneficiar da
experiência: aprenderão a exercer uma medicina que não é ensinada nas
faculdades, conhecerão melhor as grandezas do país e a realidade perversa que
condena à miséria, que governantes ufanistas insistem em proclamar extinta.
Essa medicina de pés descalços, no entanto, é incapaz de resolver problemas
mais complexos. Estes dependem de profissionais motivados, com carreiras no
serviço público bem estruturadas, unidades de saúde aparelhadas, hospitais
equipados e administrados sem corrupção ou ingerências políticas.
Na Constituição de 1988, declaramos que saúde é um direito do cidadão e um
dever do Estado. Nenhum país com mais de 100 milhões de habitantes teve a
ousadia de fixar meta tão pretensiosa. Infelizmente, os constituintes levantaram
da mesa sem indagar quem pagaria a conta.
Passados 25 anos, constatamos que 56% do investimento
em saúde vêm da iniciativa privada, para cobrir os gastos dos 48 milhões de
brasileiros com mais recursos. Aos 150 milhões que dependem do governo cabe
menos da metade do bolo.
Como consequência, esses 48 milhões de usuários dos planos de saúde têm à
disposição quatro vezes mais médicos do que os 150 milhões atendidos pelo SUS.
Tal distorção acontece por uma razão óbvia: o médico procura estar no mercado
que oferece salários mais altos e melhores condições de trabalho. Num sistema
capitalista como o nosso, não são essas as expectativas de advogados,
engenheiros, lixeiros, metalúrgicos e agricultores?
Apregoar como um grande salto na qualidade do atendimento à população a
medida de obrigar recém-formados a prestar serviços em localidades desprovidas
da infraestrutura mais elementar é simplificação demagógica.
Sem equipes treinadas, laboratórios de análises, imagens, centros cirúrgicos,
acesso a medicamentos e a hospitais de referência para encaminhar os casos mais
graves não se faz assistência médica digna desse nome.
Os especialistas calculam que no Brasil faltem 70 mil leitos hospitalares.
Estamos vergonhosamente despreparados para atender à demanda das enfermidades
responsáveis pela maioria dos óbitos: ataques cardíacos, câncer, diabetes,
obesidade, derrames cerebrais, acidentes de trânsito, tabagismo, doenças
pulmonares.
Atribuir a responsabilidade pelo descaso com o SUS à simples falta de médicos
é jogar areia nos olhos do povo descontente.
* Publicado no jornal Folha de São Paulo, em 13 de julho de 2013
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