Balança & Espada

"A justiça tem numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força bruta; a balança sem a espada é a impotência do direito" (JHERING)



Jurisprudência

sábado, 1 de junho de 2013

QUEM SÃO OS MUÇULMANOS?

POR JOÃO PEREIRA COUTINHO

Dois criminosos mataram barbaramente um soldado inglês em Londres. Em nome do Islã, disseram eles. Em nome dos irmãos muçulmanos que sofrem.

A sociedade inglesa ficou em choque. A extrema-direita prometeu vingança em várias cidades do país. Na imprensa, a pergunta habitual: que relação existe entre o Islã e o terrorismo?

Não vou fugir à pergunta. Mas, olhando e escutando os dois criminosos, é preciso saber primeiro que relações existem entre o distúrbio mental e atos desta natureza.

Um psiquiatra talvez seja mais útil do que um politólogo. Depois, e só depois, podemos discutir as relações entre uma religião e crimes praticados em seu nome. E a melhor forma de o fazer passa por escutar os próprios muçulmanos. O que pensam eles sobre os temas que normalmente são notícia?

Felizmente, ainda há quem trabalhe neste mundo: o Pew Research Center, durante quatro anos, realizou a maior enquete mundial a respeito. Entrevistou presencialmente 38 mil muçulmanos, em 39 países e em mais de 80 línguas e dialetos.

O estudo, recentemente publicado, intitula-se "The World's Muslims: Religion, Politics and Society". Qualquer interessado na matéria é obrigado a olhar para ele.

Eu olhei: durante dois dias, encontrei surpresas (muitas) e confirmações (algumas).

Sim, a relação entre a crença em Deus e a existência de uma vida moral, que no Ocidente foi praticamente enterrada com o iluminismo, permanece forte no Islã. Do sudeste asiático (94%) ao Oriente Médio e ao norte de África (91%), os muçulmanos entendem que uma vida moral está intimamente ligada a uma vida religiosa.

De igual forma, a esmagadora maioria acredita que a sharia (a lei islâmica que regula todos os aspectos do cotidiano) é a palavra revelada de Deus.

Só que as coisas começam a complicar-se quando olhamos para os detalhes. Deve haver uma única interpretação da sharia ou várias? No Oriente Médio, apenas metade defende interpretações uniformes.

No mesmo espírito, a maioria dos muçulmanos defende que a sharia deve ser a lei fundamental dos respectivos países.

Mas, surpreendentemente, metade defende que ela só deve ser aplicada aos próprios muçulmanos, não às restantes religiões.

E que aspectos da sharia são importantes para levar em consideração? A maioria é favorável à aplicação da lei islâmica em assuntos familiares e disputas patrimoniais.

São poucos os que defendem castigos corporais, embora existam exceções relevantes: 88% no Paquistão, 81% no Afeganistão e 70% no Egito não se importam com chicotadas ou amputação de membros.

E sobre o apedrejamento de mulheres adúlteras, metade diz que sim. Sobretudo nos países atrás referidos (os mesmos que também apoiam maciçamente a pena de morte para crimes de apostasia, ou seja, de renúncia da fé islâmica).

É inegável que a violência é intrínseca ao quadro legal de muitos países muçulmanos. Mas quando as perguntas lidam com o extremismo terrorista, a maioria rejeita-o enfaticamente. Só nos territórios palestinos (40% a favor) os números remam contra a maré.

Aliás, não deixa de ser inquietante olhar para os números dos territórios palestinos: sem surpresas, a maioria concorda que a sharia é a palavra revelada de Deus (75%), que deve ser a base legal de um futuro país (89%) e que deve estar sujeita a uma única interpretação (51%).

Mas os números ficam sobretudo pesados quando falamos de castigos corporais (76% a favor), apedrejamento de mulheres adúlteras (84%, idem) e morte por apostasia (66%, ibidem).

Aborto, sexo fora do casamento e homossexualidade são aberrações (como, aliás, para a esmagadora maioria dos muçulmanos de outras regiões). E 87% dos palestinos, seguindo a tendência mundial, defendem que as mulheres devem sempre obedecer aos seus maridos.

Conclusões? Não, não existe uma relação imediata entre o Islã e o terrorismo, exceto na cabeça dos terroristas (fato a que somos alheios).

Mas, por outro lado, este magistral estudo mostra como as vagas de modernidade que permitiram as liberdades do Ocidente --da reforma religiosa ao iluminismo secular-- ainda não chegaram ao Islã.

E, sem elas, será difícil resgatar essas sociedades do autoritarismo, da pobreza, da intolerância --e, em certos casos, dos extremistas que matam em nome da fé.

* Publicado no jornal Folha de São Paulo, em 28 de maio de 2013.

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