POR JOÃO PEREIRA COUTINHO
Dois criminosos mataram barbaramente um soldado inglês em Londres. Em nome do
Islã, disseram eles. Em nome dos irmãos muçulmanos que sofrem.
A sociedade inglesa ficou em choque. A extrema-direita prometeu vingança em
várias cidades do país. Na imprensa, a pergunta habitual: que relação existe
entre o Islã e o terrorismo?
Não vou fugir à pergunta. Mas, olhando e escutando os dois criminosos, é
preciso saber primeiro que relações existem entre o distúrbio mental e atos
desta natureza.
Um psiquiatra talvez seja mais útil do que um politólogo. Depois, e só
depois, podemos discutir as relações entre uma religião e crimes praticados em
seu nome. E a melhor forma de o fazer passa por escutar os próprios muçulmanos.
O que pensam eles sobre os temas que normalmente são notícia?
Felizmente, ainda há quem trabalhe neste mundo: o Pew Research Center,
durante quatro anos, realizou a maior enquete mundial a respeito. Entrevistou
presencialmente 38 mil muçulmanos, em 39 países e em mais de 80 línguas e
dialetos.
O estudo, recentemente publicado, intitula-se "The World's Muslims: Religion,
Politics and Society". Qualquer interessado na matéria é obrigado a olhar para
ele.
Eu olhei: durante dois dias, encontrei surpresas (muitas) e confirmações
(algumas).
Sim, a relação entre a crença em Deus e a existência de uma vida moral, que
no Ocidente foi praticamente enterrada com o iluminismo, permanece forte no
Islã. Do sudeste asiático (94%) ao Oriente Médio e ao norte de África (91%), os
muçulmanos entendem que uma vida moral está intimamente ligada a uma vida
religiosa.
De igual forma, a esmagadora maioria acredita que a sharia (a lei islâmica
que regula todos os aspectos do cotidiano) é a palavra revelada de Deus.
Só que as coisas começam a complicar-se quando olhamos para os detalhes. Deve
haver uma única interpretação da sharia ou várias? No Oriente Médio, apenas
metade defende interpretações uniformes.
No mesmo espírito, a maioria dos muçulmanos defende que a sharia deve ser a
lei fundamental dos respectivos países.
Mas, surpreendentemente, metade defende que ela só deve ser aplicada aos
próprios muçulmanos, não às restantes religiões.
E que aspectos da sharia são importantes para levar em consideração? A
maioria é favorável à aplicação da lei islâmica em assuntos familiares e
disputas patrimoniais.
São poucos os que defendem castigos corporais, embora existam exceções
relevantes: 88% no Paquistão, 81% no Afeganistão e 70% no Egito não se importam
com chicotadas ou amputação de membros.
E sobre o apedrejamento de mulheres adúlteras, metade diz que sim. Sobretudo
nos países atrás referidos (os mesmos que também apoiam maciçamente a pena de
morte para crimes de apostasia, ou seja, de renúncia da fé islâmica).
É inegável que a violência é intrínseca ao quadro legal de muitos países
muçulmanos. Mas quando as perguntas lidam com o extremismo terrorista, a maioria
rejeita-o enfaticamente. Só nos territórios palestinos (40% a favor) os números
remam contra a maré.
Aliás, não deixa de ser inquietante olhar para os números dos territórios
palestinos: sem surpresas, a maioria concorda que a sharia é a palavra revelada
de Deus (75%), que deve ser a base legal de um futuro país (89%) e que deve
estar sujeita a uma única interpretação (51%).
Mas os números ficam sobretudo pesados quando falamos de castigos corporais
(76% a favor), apedrejamento de mulheres adúlteras (84%, idem) e morte por
apostasia (66%, ibidem).
Aborto, sexo fora do casamento e homossexualidade são aberrações (como,
aliás, para a esmagadora maioria dos muçulmanos de outras regiões). E 87% dos
palestinos, seguindo a tendência mundial, defendem que as mulheres devem sempre
obedecer aos seus maridos.
Conclusões? Não, não existe uma relação imediata entre o Islã e o terrorismo,
exceto na cabeça dos terroristas (fato a que somos alheios).
Mas, por outro lado, este magistral estudo mostra como as vagas de
modernidade que permitiram as liberdades do Ocidente --da reforma religiosa ao
iluminismo secular-- ainda não chegaram ao Islã.
E, sem elas, será difícil resgatar essas sociedades do autoritarismo, da
pobreza, da intolerância --e, em certos casos, dos extremistas que matam em nome
da fé.
* Publicado no jornal Folha de São Paulo, em 28 de maio de 2013.
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