POR CONTARDO CALLIGARIS
Uma vez, fui contaminado pelo transtorno de um paciente. Aconteceu muitos
anos atrás, em Paris. Um jovem era aterrorizado pela possibilidade de ser
acusado de um crime com o qual ele não teria nada a ver. Incapaz de provar sua
inocência, ele passaria a vida preso ou se escondendo.
Apesar de meus esforços, as fantasias de meu paciente permaneceram frequentes
e assustadoras --apenas se tornaram mais ativas.
Ou seja, em vez de se ver mofando numa prisão ou num esconderijo, o jovem
passou a imaginar que lutaria para provar sua inocência --como o Dr. Kimble,
acusado do assassinato de sua mulher em "O Fugitivo", série televisiva dos anos
1960, que o paciente não conhecia, mas da qual eu me lembrava bem (o filme
homônimo, que retomou a história, só chegou em 1993).
O medo de meu paciente encontrou um terreno fértil na minha desconfiança
anarquista dos poderes constituídos. Ainda hoje, a ideia de ser a vítima
indefesa da Justiça de um Estado não me faz rir.
Por causa disso, custei para assistir ao filme "A Caça", de Thomas
Vinterberg. Sabia que era imperdível, mas tentava evitar o mal-estar que me
produziria o espetáculo do sofrimento de Lucas, injustamente acusado de abusar
sexualmente de uma criança.
Ora, ao longo do filme, ri repetidamente, e não foi "de nervoso". Os outros
espectadores devem ter achado que havia um louco na sala. Mas era incontrolável:
a incompetência da diretora da escolinha, do psicólogo que vai "ajudá-la" e dos
pais eram verídicas, terrificantes e criminosas, mas estúpidas a ponto de ser
cômicas.
O filme, aliás, deveria ser matéria de ensino nas faculdades de psicologia e
nas escolas de polícia, com o pedido de que os alunos reparem os erros primários
de educadores e outros adultos.
Em tese, deveríamos ter aprendido alguma coisa com tragédias jurídicas dos
anos 1980 e 1990, em que crianças foram sugestionadas e manipuladas por pais e
autoridades a ponto de formular coletivamente fantásticas acusações de abuso.
Houve as crianças "lambendo manteiga de amendoim no sexo da professora", na
Wee Care Nursery School, em Nova Jersey, e a "Kombi-motel na escolinha do sexo",
na Escola Base, em São Paulo.
Desde então, em alguns lugares do mundo, foi criada uma especialidade
acadêmica em interrogatório de menores supostamente abusados. Aconselha-se que o
interrogatório seja sempre por uma pessoa só (e filmado usando um espelho
falso). Pede-se um teste específico que verifique o entendimento pela criança da
relação entre verdade e mentira.
O entrevistador não deveria ter NENHUM conhecimento prévio da acusação. O uso
de bonecos para mostrar como foi o abuso é considerado perigosamente lúdico.
Enfim, a preferência é para entrevistas rigorosamente estruturadas, com
perguntas preestabelecidas e, portanto, menos sugestivas.
Mesmo assim, ainda hoje, muitos textos básicos sobre interrogatório de
crianças começam com a observação de que elas são relutantes a falar de abuso
sexual. Só depois, e nem sempre, observa-se que, às vezes, as crianças se servem
de acusações de abuso como meio de expressão: por exemplo, para assinalar aos
adultos que elas podem ser desejáveis ou, justamente, para se vingar de um
adulto que não foi seduzido por elas.
Não sei o que acontece, hoje, nas nossas delegacias especializadas, mas, de
qualquer forma, nossa cultura é destinada a manipular a denúncia infantil de
abuso.
Negamos a sexualidade infantil e idealizamos a inocência (e a "sinceridade")
das crianças: só nos resta linchar os supostos abusadores antes que os detalhes
dos casos nos revelem que a infância não é aquela terra dos anjos com a qual
insistimos em sonhar.
No filme (e na vida real), é proposta aos pais uma lista de sintomas que
indicariam que uma criança está sendo exposta a um trauma.
É fácil imaginar os efeitos da lista nos pais, assim como é fácil entender
sua inutilidade: a sexualidade não é o efeito de um desenvolvimento interno e
autógeno, ela é sempre efeito de traumas.
A menina de "A Caça" não foi abusada pelo homem que ela acusa, mas não lhe
faltam traumas com os quais (graças aos quais?) "crescer". Trauma é a própria
rejeição por Lucas, que lhe faz inventar que Lucas a deseja. Trauma é a
pornografia no iPad dos amigos do irmão. Trauma é o questionamento pela corte de
idiotas que a interrogam e sobre quem, manifestamente, ela deve se perguntar:
mas o que será que eles realmente querem de mim?
* Publicado no jornal Folha de São Paulo, em 16 de maio de 2013
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